800 anos da Carta Magna (1215-2015)
Geralmente, as descrições do sistema feudal que costumam aparecer nos livros de história fornecem uma falsa impressão de uniformidade e de universalidade deste mesmo. A primeira impressão é basicamente produzida, porque se costuma tomar como modelo o feudalismo francês – extremamente hierarquizado e fechado – e extrapolar esse modelo para os outros países da Europa. A segunda impressão, decorrente desta extrapolação, não permite perceber que há países de Europa em que simplesmente não houve nada que se assemelhasse a um sistema feudal. Portugal é um exemplo de uma formação bastante distinta em que o rei sempre foi mais forte do que a nobreza, freqüentemente a desprezava e buscava sua força diretamente no povo. E isto terá uma significativa influência sobre a colonização do Brasil, como veremos.
Quem estuda a história de Portugal verifica que o poder sempre esteve nas mãos do soberano e da máquina que o cercava: cortesãos, burocratas, acólitos, enfim, o seu estamento. À nobreza jamais se permitiram as regalias e mandos que caracterizavam o feudo. As tentativas, por acaso feitas por alguns nobres de alta estirpe, foram de pronto debeladas, reafirmando-se cada vez mais o poder do soberano, que, através dos seus Conselhos Municipais, exercia a política e a polícia em todo o reino. Nas lutas épicas, que colocaram no trono o Mestre de Aviz, vemos a figura notável de João das Regras procurando e obtendo a aliança do rei com o povo, acima da nobreza. (Macedo Soares Guimarães, 1981, p.21).
A Inglaterra, por sua vez, mostra-se como exemplo de uma peculiar formação feudal, que favoreceu bastante o surgimento da instituição parlamentar desde a ocupação normanda. E isto terá significativa influência sobre a colonização inglesa da América. Quando os barões normandos liderados por Guilherme, o Conquistador – Duque da Normandia – invadiram a Inglaterra e derrotam o Rei Alfredo na Batalha de Hastings (1066), impuseram a língua francesa aos nobres anglo-saxões
na sua corte, mas não transpuseram para a Inglaterra a formação social existente na França. Guilherme e seus sucessores experimentaram uma condição sui generis: na Inglaterra eram reis, mas – como duques da Normandia – eram vassalos do rei da França.
Como o trono pertencia a um duque e abaixo dele todos eram barões, as terras foram divididas com bastante proporção, a não ser nos condados das fronteiras com a Escócia e o País de Gales, que – por questões de defesa do reino, freqüentemente atacado por tribos celtas – eram notadamente maiores do que as demais divisões do reino (Burke, l989).
Não havendo uma escala hierárquica detalhada separando o rei dos outros nobres, e estando estes em condição de igualdade entre si mesmos, tudo favorecia à sua união, para constituir uma força contra possíveis abusos do monarca. Assim sendo, quando Ricardo Coração de Leão foi para a cruzada na Terra Santa, seu irmão, Landless John (João Sem Terra), ocupou o trono provisoriamente e logo se revelou um soberano extremamente despótico e cruel para com o povo e mesmo para com os próprios barões. Humilhados e sobrecarregados de impostos extorsivos, eles se reuniram, redigiram a Magna Carta e simplesmente a impuseram a João Sem Terra como condição para que ele não fosse apeado do poder. Desse modo, em 1215 – em plena Idade Média! – um rei foi obrigado por um grupo de nobres a governar de acordo com princípios legais estabelecidos por eles, e tanto a Inglaterra como o mundo conheceram o protótipo de todas as Constituições modernas.
Mais que isto: os nobres passaram a constituir um protótipo de Parlamento, pois entre outras coisas, tinha a mesma atribuição básica de todos os parlamentos existentes hoje: o de votar o orçamento da nação e todos os impostos. A figura do habeas corpus e outras visando a garantias contra arbitrariedades estavam presentes naquele breve, porém eloquente e grandioso, documento. Como diz W.H. Dunham Jr.:
“Antes de tudo, a Grande Carta era uma ideia viva e vívida e concorreu para a construção de ao menos dois princípios constitucionais cardinais: o governo pelo consentimento ou contrato e a rule of law (estado de direito). Por mais de três séculos, a “forma e a substância” da Magna Carta forneceram uma autoridade abrangente que assumiu o lugar de uma Constituição. Como tal, ela forneceu em certa medida a certeza na lei e a consistência no governo, que os juristas do século XVII esperavam encontrar no que eles denominavam “a lei fundamental” e conseguiram encontrar, após a Gloriosa Revolução em 1689, na Constituição Britânica.” ( Dunham Jr. , 1965, p.26).
Na realidade, não há nenhum documento intitulado “British Constitution”. O autor estava aludindo à Bill of Rights (Carta dos Direitos), promulgada um ano após a Revolução Gloriosa de 1688 e cem anos antes da Revolução Francesa. A Bill of Rights não só reafirmou os mais importantes dispositivos da Magna Carta como acrescentou outros, que simplesmente foram detalhados pela Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão promulgada com a Revolução Francesa – por sinal uma das poucas contribuições positivas dessa revolução sanguinária e desastrosa, que precisa ser desmistificada.
Imprescindível não confundir com a Declaração dos Direitos Humanos feita pela assembléia geral da ONU em 1948, que continha idéias novas e idéias boas. O problema é que as boas não eram novas (por exemplo: Todo ser humano tem direito à liberdade de expressão) e as novas não eram boas (Por exemplo: Todo ser humano tem direito a emprego e
moradia). Como a todo direito tem de corresponder um dever, cabe perguntar quem tem o dever de fornecer empregos e moradias? O Estado? Mas, neste caso, o Estado passa a exercer funções que são exclusivas da iniciativa privada, assim como o fornecimento de segurança pública e de garantia do cumprimento dos contratos são funções exclusivas do Estado. E temos boas razões para rejeitar que um cumpra funções que são e devem ser peculiares ao outro. Complementando o que disse Dunham Jr., diz W.L. Warren:
“Embora a Magna Carta estivesse primordialmente voltada para assuntos que interessavam mais de perto aos barões normandos, outros interesses não foram inteiramente negligenciados. Os rebeldes teriam ficado desamparados sem o apoio dos seus cavaleiros, é claro. Assim sendo, ainda que por mera questão de prudência, eles incluíram no seu manuscrito que todos os direitos e liberdades vigentes seriam reconhecidos por eles, nas suas relações com os seus próprios homens. (…) Os barões vislumbraram ainda a importância crescente das classes mercantis e procuraram proteção para os privilégios das cidades, liberdade de movimento para os mercadores e um padrão nacional de peso
e medida. Todos foram beneficiados com o artigo que estabelecia a suavização das penalidades legais, mas este é o único que mencionava camponeses não-livres (…) Ainda no rascunho uma outra mudança foi feita: as palavras “qualquer barão” foram mudadas, nos lugares adequados, para “qualquer homem livre” (liber homo no texto em latim), coisa que pode ter parecido uma pequena questão de fraseologia na época, mas que foi de grande importância para fornecer à Carta uma aplicação mais ampla no futuro.” (Warren, 196l, 258, os grifos são nossos).
Todavia, entre estes dois importantes marcos – tanto da história da Inglaterra como do progresso das instituições jurídicas e políticas – não devemos pensar que tenha havido uma continuidade marcada por reformas aperfeiçoando gradativamente a sociedade inglesa. Na realidade, a revolta dos barões contra um poder despótico e a ideia de impor limites legais ao soberano foram sementes que levaram perto de três séculos para frutificar no solo britânico com a última de todas as revoluções da história da Inglaterra, a Revolução Gloriosa de 1688 – muito mais uma deposição de um rei carente de legitimidade do que um episódio marcado a ferro e sangue, daí esta mesma também ser conhecida pelo nome de Bloodless Revolution (Revolução Sem Sangue).
Anteriormente ao referido marco do século XIII, a Magna Carta de 1215, encontramos no século XIII um acontecimento digno de nota: um importante movimento renovador surgiu no interior da própria Igreja Católica e não chegou a se desligar desta mesma [apesar de sérios atritos iniciais entre a acomodada estrutura do papado e a insatisfação com esta acomodação]. Referimo-nos a São Francisco de Assis (1182-1226) e à Ordem Franciscana fundada por seus seguidores à
sua revelia em 1209. O franciscanismo deu importantes contribuições, tanto no sentido religioso como no filosófico.
Os grandes fatores produtores destas contribuições foram a simplicidade e a austeridade moral, bem como o amor pela natureza e seu intenso desejo de conhecê-la melhor. A visão de mundo fransciscana se espalhou por toda a Europa como um impulso renovador pré-renascentista, mas na Inglaterra assumiu determinadas peculiaridades em que a valorização da experiência e o amor pela natureza contribuíram significativamente para a formação da mentalidade empirista britânica e para a constituição da ciência experimental.
Temos em mente aos monges franciscanos que foram professores de filosofia em Oxford no século XIII: Roberto Grosseteste (1168?-1253), que muitos historiadores da ciência consideram o grande precursor da ciência experimental (Araújo Santos, 1990, pp. 93-100) e seu continuador, Roger Bacon (1214? 1294) – que não sabemos se foi parente de Francis Bacon, mas sabemos que antecipou o interesse básico deste último.
Grosseteste tentou aplicar a matemática para a explicação dos fenômenos naturais: para ele a física se reduzia às regras da figura e do movimento. Tal como F. Bacon alguns séculos mais tarde, R. Bacon não vislumbrou a importância explicativa da matemática aplicada às ciências naturais, mas criticou a esterilidade do método silogístico enquanto instrumento para o conhecimento do mundo natural e se concentrou inteiramente na experiência (Sciacca, 1967, vol. I, p.236). Esta importante escola teve continuidade com Duns Scotus (1266-1308) e chegou ao século XIV com Guilherme de Ockham (1285-1349). Lamentavelmente, não dispomos de espaço para mostrar como ela era avançada em relação ao seu tempo e ao resto da Europa.
*Texto extraído de Mario A.L. Guerreiro: “A Superação da Imaturidade. De Francis Bacon à Revolução Americana (livro inédito)