Liberdade de expressão e espaços públicos
BERNARDO SANTORO *
A sociedade brasileira ficou chocada nesse fim-de-semana com a atitude de um casal dentro da “Marcha das Vadias”, que depredou e destruiu imagens religiosas em frente à festa da Jornada Mundial da Juventude. Além da depredação de imagens, houve uma ostensiva prática de atos obscenos, com a moça do casal introduzindo uma imagem de santo em sua vagina e o rapaz introduzindo um crucifixo no seu reto.
Esse episódio parece ser um bom ponto de partida para uma discussão sobre liberdade de expressão. Existe limite para o direito mais básico da democracia? E se ele existe, até onde vai?
A liberdade de expressão é um requisito sine qua non da democracia. Sem que um cidadão possa exprimir sua vontade, a mesma não pode ser conjugada com outras para se chegar a uma decisão popular. Portanto, em um processo decisório da democracia, como eleições, plebiscitos e referendos, ela precisa ser ilimitada, sob pena de se manchar o sufrágio.
Fora do processo democrático, o direito de expressão é um direito individual fundamental. Como todo direito individual, dentro da visão liberal de direito, ele possui duas características básicas: (i) ele é ilimitado dentro da propriedade privada do indivíduo e limitado pelas outras propriedades privadas que o circundam; e (ii) ele é limitado por direitos individuais de outros indivíduos dentro da propriedade pública. Esse dois conceitos merecem uma melhor explicação.
Dentro da propriedade privada de um indivíduo, sua liberdade de expressão é ilimitada, pois é a partir da expressão de suas vontades inserida dentro de sua propriedade privada que o indivíduo constrói seus valores e sua identidade. A limitação a essa expressão é externa à propriedade, ou seja, o uso da sua propriedade não pode turbar injustamente a propriedade alheia, sob pena de um indivíduo atacar o direito de expressão de outro. Um exemplo claro disso é no caso de barulho alto praticado por vizinho que turbe a propriedade de alguém. Aqui o vizinho está atingindo o direito de expressão do próximo ao invadir com seu barulho a propriedade privada de outrem. O limite é bem visível.
Uma discussão que já pode ser feita aqui é: as pessoas têm um direito natural de não serem ofendidas? A resposta se encontra na explicação acima: as pessoas têm o direito de não verem sua propriedade privada ser turbada, mas não tem o direito de não serem ofendidas. Turbação de propriedade tem um caráter objetivo: se um indivíduo invade a propriedade de outro, deve cessar essa invasão. Já ofensa tem caráter subjetivo: eu posso ficar ofendido com uma música com conteúdo chulo, como as várias músicas funk que tocam no Rio de Janeiro, mas não posso impedir a existência dessa música que me ofende, e nem impedir alguém de ouví-la em propriedade privada do ouvinte. A mesma coisa acontece com atos sexuais: eu posso ficar incomodado com a existência do homossexualismo e de homossexuais, mas não posso impedir que pessoas pratiquem atos homossexuais em sua propriedade privada, assim como homossexuais não podem impor sua presença na propriedade privada de um homofóbico.
Portanto, através do respeito à propriedade privada, a maioria dos conflitos relativos a direito de expressão estariam resolvidos. O problema se dá quando nos encontramos em propriedades públicas.
Propriedades públicas são propriedades pertencentes ao estado e, portanto, seguem regras produzidas pelo próprio estado. Em regimes democráticos, essas regras são produzidas, a princípio, por um sistema pré-estabelecido constitucionalmente, supostamente se garantindo direitos individuais básicos de todos os cidadãos. Como regras democráticas, elas tendem (apenas tendem, pois não é uma regra absoluta) a refletir um regramento minimamente razoável, ponderando-se o direito de liberdade de expressão dos indivíduos com valores culturais tradicionais, o que, em sociologia, se diria ser a contraposição do conteúdo dinâmico inovador da sociedade com o seu conteúdo estático rígido.
Com isso, nas propriedades públicas, por falta de um sistema de propriedade privada balizador, há uma constante tensão interna entre tradição e modernismo cuja resolução é impossível de se resolver definitivamente, e as regras democráticas para uso do espaço público mudam de acordo com a conveniência política do governo em gestão.
A melhor forma de se resolver problemas de liberdade de expressão é a maximização de espaços de propriedade privada, onde o dono da propriedade cria regras indiscutíveis de expressão, e minimização das propriedades públicas, que é onde o conflito interno típico de propriedades sem dono definido se faz mais presentes.
Logo, em estados liberais, com menor presença do estado e menor quantidade de bens públicos, a tendência natural é que ocorram menos conflitos relativos à liberdade de expressão, enquanto que em estados mais socializados e com maior quantidade de espaços públicos, a tendência natural é que ocorram mais desses conflitos.
A atual regra democrática que tenta disciplinar o exercício da liberdade de expressão em propriedades públicas, que, repisa-se, são indisciplináveis por natureza, dispõe que essa liberdade é extremamente ampla, só devendo ser tolhida em casos muito específicos, como no caso de (i) preservação do direito de ir e vir de outras pessoas e (ii) para impedir a execução de atos obscenos; entre outros. Destaca-se aqui que esse é um sistema extremamente favorável à liberdade de expressão.
Mas se deve levar em consideração ainda que, nesse modelo de propriedade pública, a regra pré-estabelecida deve ser necessariamente cumprida, pois sem a garantia de limitação que a Lei exerce sobre o governo, entra-se em estado de ditadura.
Entrando no caso concreto, os componentes da “Marcha das Vadias” (que, diga-se, tem um péssimo departamento de marketing), tem todo o direito de se expressar como bem quiser dentro da propriedade privada de seus membros, respeitando-se os limites externos das propriedades privadas ao seu redor, como garantia do seu direito de cidadão. Se o estado cria regulamentos com a finalidade de regular a liberdade de expressão dentro da propriedade individual dos cidadãos, aqui sim se configura de maneira cristalina a censura e a opressão estatal.
Mas na propriedade pública, gerida por regras democráticas que levam a tensão social em consideração, as pessoas precisam respeitar os parâmetros democráticos estatais, pois essas regras são, antes de tudo, limitadoras do próprio poder governamental. Esses parâmetros, portanto, não são limitadores da liberdade de expressão, mas sim reguladores dessa liberdade no âmbito dos bens públicos, respeitando-se os direitos individuais dos demais.
A “Marcha das Vadias”, ao permitir que pessoas dentro da manifestação abusassem do direito de expressão, ao praticarem atos obscenos como o empalamento com crucifixos, abusou por completo dos seus direitos individuais, ferindo de morte a sua legitimidade e manchando a possível justeza de algumas de suas reivindicações. No jargão popular, foi um grande “tiro no pé”.
Em suma, liberdade de expressão é um direito fundamental que deve ser ilimitado apenas em propriedades privadas, sendo essencial ser limitado em propriedades públicas para preservação dos direitos individuais de outros cidadãos, e tais limites não caracterizam censura se criados dentro de um ambiente democrático que preserve ao máximo o valor da liberdade. Atos obscenos públicos, como os protagonizados por integrantes da “Marcha das Vadias”, desrespeitam direitos individuais e não podem ser protegidos, como bem faz o direito brasileiro.
* DIRETOR DO INSTITUTO LIBERAL