Carlos Lacerda: O Homem e o Político

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Segunda parte da série sobre o jornalista e político brasileiro Carlos Lacerda

Carlos-Lacerda2Nascido em 30 de abril de 1914, ele era filho do tribuno e escritor Maurício Paiva de Lacerda (1888-1959) e de Olga Caminhoá Werneck (1892-1979). Foi registrado em Vassouras, embora tenha nascido no Rio de Janeiro. Seu avô, Sebastião Eurico Gonçalves de Lacerda (1864-1925), fora ministro do Supremo Tribunal Federal e atuou em defesa de ideias republicanas e abolicionistas.

A história de envolvimento da família com a política continua com seu pai e seus tios, Paulo de Lacerda e Fernando Paiva de Lacerda. Os tios foram comunistas militantes, ligados ao Partido Comunista Brasileiro (PCB), e chegaram mesmo a ocupar cargos dirigentes. Segundo o biógrafo de Carlos Lacerda, John W.F. Dulles (1996), Maurício deu ao ilustre filho seus nomes (Carlos e Frederico) em homenagem aos filósofos do chamado Socialismo Científico, Karl Marx e Friedrich Engels. Muitos amigos de Maurício eram anarquistas e socialistas que escreviam em A Barricada (1915) e O Debate (1917), bem como políticos populistas e líderes trabalhistas que desafiaram o presidente Venceslau Brás e a polícia durante as grandes greves em meados de 1917. A vida do pai de Lacerda foi também especialmente intensa, tendo agido como ardente defensor de ideias socialistas como alternativas políticas válidas para o país, conquanto na maior parte do tempo se mantivesse em posição de independência com relação aos comunistas (DULLES, 1992, p. 21).

Para espanto de quem o conhece pela sua fase mais célebre, é na esquerda que tanto combateria que Carlos Lacerda começou tanto sua atuação política quanto sua atuação na imprensa – que nos interessa mais diretamente aqui. Aos 16 anos, em fins de 1930, ele se apresentou para trabalhar no Diário de Notícias. O primeiro artigo em que seu nome apareceu como autor veio à luz em 29 de agosto de 1931, no qual Lacerda discutia os anseios da juventude e aqueles que a desprezavam. Defendendo um aumento no espaço da Faculdade de Direito, o jornalista, nos artigos que se sucederam, apoiou “a abolição do privilégio das cátedras” e a “livre manifestação de todas as correntes ideológicas do tempo presente”.

Continuou seu trabalho em uma revista da Casa do Estudante do Brasil, que Lacerda, encarregado do projeto, chamou de Rumo.Em junho de 1934, foi nessa revista que Carlos escreveu um artigo dirigindo fortes críticas ao que considerava como feições fascistas de Plínio Salgado e sua Ação Integralista Brasileira.

Após a falência da revista, Carlos passou a colaborar com a Revista Acadêmica, publicando lá seu primeiro artigo em 1934 – uma análise de São Bernardo, de Graciliano Ramos, na qual, já cursando a faculdade de Direito, evidenciava sua adesão a ideias marxistas, ao argumentar que“quando a Revolução vier, encontrará um sistema para destruir. Não encontrará homens, porque esses, os da classe dominante, já se dissolveram na lama de si mesmos” (apud DULLES, 1992, p. 35). Atuando em organizações estudantis com forte ideário esquerdista, pichou “Abaixo o imperialismo, a Guerra e o Fascismo” em uma estátua de Pedro Álvares Cabral. Ele também publicou artigos em 1933 no Jornal do Povo, veiculoque Aparício Torelli fez circular durante cerca de duas semanas.

Apesar de tudo, Lacerda não fez uma inscrição oficial na juventude do PCB. Em 1935, porém, com a fundação da Aliança Nacional Libertadora (ANL), organização de movimentos de esquerda formados para combater frentes populares de tendências vistas como fascistas, Carlos foi orador oficial da diretoria local. Escrevendo de vez em quando para A Manhã e, mais assiduamente, para a Revista Acadêmica, Lacerda aproveitava a oportunidade para defender o programa marxistaque abraçava. Com o pseudônimo de Marcos, contou em um livreto a história do quilombo de Manuel Congo – líder da maior rebelião de escravos ocorrida na região do vale do Paraíba do Sul, especificamente em Paty do Alferes, no Rio de Janeiro – de valor histórico, usado também para uma espécie de propaganda comunista velada, enaltecendo conceitos como o de “classe dominante”.(DULLES, 1992, p. 38).

Em novembro de 1935, aconteceu a Intentona Comunista, uma tentativa de golpe contra Getúlio Vargas pelo PCB. Em 1937, aliando esse fato ao famigerado Plano Cohen, o então presidente do Brasil alegou a necessidade de instalar um governo de exceção, iniciando a ditadura do Estado Novo. Na clandestinidade, Lacerda se refugiou na velha chácara da família em Vassouras, onde foi protegido pelos parentes influentes. Nessa época, se casou com Letícia Abruzzini.

Em meados de 1938, a trajetória do jornalista seguiu um caminho natural para quem precisava de uma fonte de renda mais segura, e ele foi trabalhar no Observador Econômico e Financeiro. Curiosamente, Samuel Wainer (1910-1980), futuramente visto como um grande oponente de Lacerda, o admirava nessa época, e permitiu a publicação de alguns de seus artigos de cunho esquerdista em seu veículo Diretrizes.

A virada que fez Carlos Lacerda assumir o papel que o notabilizou historicamente se deu a partir de sua rejeição pelo próprio Partido Comunista. Tudo começou quando o governo do Estado Novo decidiu comemorar seu aniversário com uma exposição das realizações de seus ministérios, e uma parte dela abordava o combate do Ministério da Justiça ao comunismo. O Observador, ajudado financeiramente pelo Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), órgão do governo, deveria colaborar. Lacerda ficou reticente em escrever devido à sua ligação com os comunistas, mas foi orientado por eles mesmos a publicar um artigo, tentando convencer o público de que a ideologia do partido não representava um perigo. O texto publicado, porém, não agradou aos seus mentores, que acusaram Lacerda, na Revista Proletária,de ser “reles aventureiro a serviço do fascismo que, por algum tempo, conseguiu ludibriar a boa-fé dos meios revolucionários e democráticos”. (DULLES, 1992, p. 64)

O percurso posterior de Lacerda demonstra que a transformação foi radical. Como registra Aloysio Castelo de Carvalho (2012) em seu livro O Caso Última Hora e o cerco da imprensa ao Governo Vargas, Lacerda se converteu ao catolicismo por influência de Alceu de Amoroso Lima e Gustavo Corção. Se a opção religiosa já o fazia divergir do marxismo ortodoxo, sua transformação na esfera política apenas a acompanha. Lacerda assumiu uma faceta radicalmente anticomunista, afirmando que nessa doutrina há elementos incompatíveis com a nossa civilização, tais como “a marcha para a estatização das estruturas, a sua subordinação ao Estado como agente e dirigente de toda a sociedade”. (CASTELLO, 2012, p. 39) Passou a enxergar na doutrina comunista o perigo de uma ditadura pior do que as outras, muito mais organizada, e, portanto, muito mais difícil de derrubar.

Lacerda se tornou o que hoje comumente, em um emprego vulgar do espectro político, se chamaria de direitista, ou conservador – apesar de ele próprio rejeitar o uso, como deixa claro em sua obra O Poder das Ideias(1963), uma vez que receava a multiplicidade de aplicações que são dadas aos termos “direita” e “esquerda”, preferindo ser conhecido como um homem da democracia.  Não foi o único representante da direita política no Brasil que abandonou um passado de envolvimento com a esquerda, antecedendo, nesse particular, nomes como Paulo Francis e Olavo de Carvalho.

Ele adotou um discurso similar ao das ideias do liberalismo clássico, mas, como Maurício Dominguez Perez(2007) deixa claro em sua obra Lacerda na Guanabara – A reconstrução do Rio de Janeiro nos anos 1960, tinha uma visão mais estatizante da economia que a de liberais de tradição genuinamente inspirada na obra do economista Friedrich Hayek – ícone da Escola Austríaca e do liberalismo neoclássico -, como Roberto Campos. Isso foi causa de alguma tensão entre os dois, quando este último foi ministro no governo Castelo Branco, embora, ao fim de sua vida, Lacerda tenha dito que “Roberto Campos conhece tudo que eu não conheço de economia, e eu conheço tudo que ele não conhece de política. Ele é o homem que eu escolheria para Ministro da Fazenda de meu governo.” (DULLES, 2000, p. 588)

Lacerda se tornou muito popular entre uma considerável parcela da classe média, especialmente no Rio de Janeiro. Gerou-se, em torno dele, um fenômeno de predileção e idolatria, chamado por simpatizantes e detratores de lacerdismo. Juntou-se ao partido que reunia lideranças mais voltadas aos pensamentos conservadores e liberais no Brasil, a União Democrática Nacional (UDN), e atraiu inimizades tanto de comunistas quanto de populistas e trabalhistas – os integrantes do que ele chamava de “oligarquia da Revolução de 1930”. Também se tornou o maior inimigo público do governo de Getúlio Vargas. Quando, anos após o Estado Novo, Getúlio novamente se candidatou em 1950 à presidência, Lacerda já se destacava como opositor a sua campanha. Combateu também os presidentes Juscelino Kubitschek de Oliveira e João Belchior Marques Goulart, além de Jânio da Silva Quadros (a quem inicialmente apoiou), mas foi mesmo a polêmica com Vargas que deixou mais marcas, tanto do ponto de vista político, quanto do ponto de vista jornalístico. Em 5 de agosto de 1954, ele sofreu um atentado em Toneleiros, em um evento que acirrou a crise que conduziu ao suicídio de Getúlio.

Durante esse mesmo governo constitucional de Vargas, Lacerda popularizou seu jornal, Tribuna da Imprensa. Originalmente, Na Tribuna da Imprensa era o nome de uma coluna que ele publicou no jornal Correio da Manhã, inspirando o periódico fundado em 27 de dezembro de 1949, repleto de matérias e editoriais famosos. Carlos Lacerda ainda foi vereador (1945), deputado federal (1947-1955), governador do Estado da Guanabara (1960-1965) e dono da editora Nova Fronteira.

Um dos aspectos mais criticados pelos adversários é sua vinculação a movimentos considerados golpistas, aos quais apoiou abertamente. Em 1964, Lacerda foi, ao lado de nomes como Ademar de Barros e Magalhães Pinto, uma das lideranças civis a defender a deposição do governo João Goulart. Muito próximo de alguns setores militares, publicou na Tribuna, em 2 de abril daquele ano:

Escorraçado, amordaçado e acovardado, deixou o poder como imperativo de legítima vontade popular o Sr. João Belchior Marques Goulart, infame líder dos comuno-carreiristas-negocistas-sindicalistas. Um dos maiores gatunos que a história brasileira já registrou, o Sr. João Goulart passa outra vez à história, agora também como um dos grandes covardes que ela já conheceu.

Apesar do apoio inicial, ele não se satisfez com a prorrogação do mandato de Castelo Branco, o primeiro dos presidentes militares, e receou que o regime se transformasse em uma ditadura sem desfecho previsto, o que de fato aconteceu. Tornando-se oposição, articulou-se com antigos rivais políticos para formar a Frente Ampla. O resultado foi que teve seus direitos políticos cassados em 1968, vindo a morrer em 21 de maio de 1977, na clínica São Vicente, oficialmente por infarto no miocárdio.

Para além de todas as polêmicas que o cercam, resta evidente que toda a sua vida refletiu sua atuação como jornalista, e esta, por sua vez, acabou tendo relevante papel em relação aos outros aspectos de sua rica biografia.

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Lucas Berlanza

Lucas Berlanza

Jornalista formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), colunista e presidente do Instituto Liberal, membro refundador da Sociedade Tocqueville, sócio honorário do Instituto Libercracia, fundador e ex-editor do site Boletim da Liberdade e autor, co-autor e/ou organizador de 10 livros.

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