Fernando Henrique Cardoso por ele mesmo, em “A Arte da Política – A história que vivi”
Antes da ascensão de Lula e o começo da era lulopetista, durante nada desprezíveis oito anos o Brasil foi governado pela outra força político-partidária mais expressiva do país na atual fase republicana, em um período que também ficou e ficará, por diversas razões e de diferentes maneiras, marcado no imaginário popular. Refiro-me, naturalmente, aos governos do PSDB, conduzidos pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso.
Entender a construção da realidade nacional exige travar contato mais íntimo com os homens que a empreenderam nas esferas mais elevadas da administração pública, sobretudo quando se está falando de uma fase de transformações tão importantes e que, transcorrido historicamente tão pouco tempo, já engendra, entre os próprios brasileiros, tantas polêmicas e tantas versões. Como poucas vezes, temos, nesse caso, a oportunidade de conhecer o estadista FHC através do depoimento detalhado do próprio, e não apenas de descrições de terceiros. É o que encontramos no livro A Arte da Política – A história que vivi, com quase 700 páginas de registro da passagem tucana pela presidência e do homem que a empreendeu.
FHC pode ser acusado de muitas coisas, mas não de ser esquivo em sua abordagem sobre o próprio governo. Ele se defende das acusações acerca da compra de votos para aprovar a emenda da reeleição – que reputa como de muito pouco fundamento -, explica as dificuldades atravessadas em crises econômicas como a asiática, aborda até o chamado “apagão” no final de seu governo. O destaque maior, ao menos na primeira metade da obra, fica, no entanto, para sua maior realização: a consolidação do Plano Real, com seu tripé macroeconômico e seu legado possibilitador de desenvolvimento e maior sanidade financeira para o país, ao lado da Lei de Responsabilidade Fiscal. FHC descreve uma luta cruenta, em que esteve, junto a figuras como Pedro Malan, Gustavo Franco e Armínio Fraga, na economia, e Luís Eduardo Magalhães (PFL), na política, enfrentando os ataques vindos de todos os lados – desde aqueles, entre a esquerda e os setores oligárquicos, que desejavam manter uma tônica profundamente estatizante no modelo brasileiro, até, em bem menor quantidade, os que desejavam reformas ainda mais liberais que as que ele ousava aplicar. Uma batalha dolorosa, de votações tensas e oposições acirradas, que, travada com convicção e trazendo, ao final, conseqüências positivas para os brasileiros, nos permite aumentar nosso respeito pela figura do ex-presidente, a despeito das divergências inconciliáveis que conservamos.
Nada disso, porém, é o aspecto para que desejo chamar atenção. Sempre tive maior interesse na dimensão simbólica e ideológica por trás dos homens públicos, por mais desprezada e eventualmente até nula que ela seja no cenário tupiniquim – sendo este, aliás, um dos temas abordados pelo próprio FHC, que denuncia o controle frouxo dos partidos sobre suas bancadas, com exceção “dos ditos de esquerda, desde as variantes de partidos de origem comunista ao PT”, com alguns, como o PDT, o PSB e o próprio PSDB mantendo “alguma consistência no voto dos parlamentares, embora com dissidências admitidas”, situação que o sociólogo reputa à competição de candidatos de um mesmo partido em um mesmo território e à não-vigência de regras de fidelidade partidária mais sólidas. Isso gera uma cultura política que privilegia a prestação de serviços com certo quê de clientelismo populista, sem preocupação com convicções ou coerência de princípios. Essa dita coerência, a meu ver, manifesta em escala de valores e na adesão a determinados conjuntos de princípios ou atitudes – que podem consistir, também, por que não, em respeito ao pragmatismo necessário e à concretude do real, que não deixam de ser “princípios ou atitudes” -, é importante definidor de pertencimentos políticos. Sob esse prisma, em que campo político estava (ou está) Fernando Henrique? Como ele pensa, em que horizonte filosófico se encaixa? Ele se encaixa mesmo em algum?
Um mérito a se reconhecer: acredito que a resposta é sim. FHC formaliza uma adesão a uma determinada linha de pensamento, e não me parece que tenha se desviado dela em seu governo, concordemos ou discordemos. Não é, porém – a nosso ver, infelizmente -, aquela que lhe imputam. Rótulos estúpidos como “neoliberal” e “privatista”, ou mesmo o de membro da “direita”, passam longe da matriz tucana que Fernando Henrique abraça. Embora ele descreva sua capacidade de manter boas relações com líderes políticos mundiais de diferentes posições no espectro político, e seu governo tenha se construído em aliança com o PFL (representante de setores oligárquicos e alguns políticos com ares mais liberais) e o PTB (representante do trabalhismo) – entrando em última hora o PMDB, partido de origem de FHC, caracterizado por ele como defensor de um “vago ideário desenvolvimentista algo estatizante” e indispensável na época, pela sua extensão de influência no país, para conseguir aprovar as medidas tão difíceis daquela gestão -, sua proximidade pessoal maior é claramente com a Terceira Via de centro-esquerda e com a social-democracia europeia, com Bill Clinton e Tony Blair. Fernando Henrique é capaz de expressar, no livro, reverência por figuras patrióticas, como José Bonifácio e Joaquim Nabuco, e mesmo por pensadores fora de seu campo político, como o francês Tocqueville (ao qual ele mesmo se refere como “liberal-conservador”) e o brasileiro Roberto Campos, em manifestações de identificação com um ideário nacional e com o espírito respeitoso da democracia e da coexistência de posições que setores torpes como o lulopetista jamais reproduziriam. Mas ele é, fundamentalmente, um homem de esquerda, ainda que moderada. Aponta como algumas de suas principais preocupações o combate ao “racismo, preocupação com o meio ambiente, igualdade de gênero, políticas de direitos humanos”, implementando algumas dessas agendas com medidas francamente à esquerda que reprovamos profundamente, como as chamadas “ações afirmativas”, isto é, as políticas de cotas. Defende enfaticamente a informatização do voto, abrindo portas para nossas urnas duvidosas que exaltamos como referência mundial. FHC também não deixa de lidar com o terrorismo do MST em um tom um tanto condescendente e simpático, assim como em relação à Revolução Cubana de Fidel Castro, que ele diz não conseguir condenar completamente, a despeito de suas violações dos “direitos humanos” que o tucano se propõe a combater – inclusive propondo as reparações financeiras às vítimas do regime militar brasileiro, ofertadas até hoje em volumes muito questionados, e a pessoas também questionáveis -, por conta de seu “valor simbólico”. Essa coisa de “valores simbólicos”, que ele enxerga também em Lula a ponto de achar que devemos ter cuidado antes de prendê-lo por seus malfeitos, já turva a percepção moral de FHC desde então, como se vê.
Mas ao dizê-lo de uma esquerda moderada, queremos frisar que isso tem um significado real. O desejo de Fernando Henrique era fazer um governo social democrata, mas que cumprisse o necessário papel de integrar o país ao mercado internacional, o que não deixava de ser o normal para outros partidos sociais democratas do mesmo período em outros países. Receou a tendência, após os anos 90, de os países latino-americanos voltarem a optar por um sistema mais estatizante e segregacionista econômico, pretensamente “não-capitalista e isolado, com Estado forte e bem-estar social amplo”, uma aposta completamente utópica – que acabou de fato sendo feita a partir dos triunfos do bolivarianismo e do Foro de São Paulo. FHC rejeitava o que chamava de “progressismo anticapitalista e profundamente nacionalista” em vigor no Brasil, “alimentando uma visão autárquico-isolacionista”. Elogiou Keynes, teórico do intervencionismo estatal tão combatido pelos economistas liberais, mas defendeu o capitalismo, que considerava a única possibilidade real de sistema econômico, a ser aplicado e fortalecido no Brasil, de par com as suas preocupações “sociais”, próprias da sua dimensão social democrata. Acusa diferentes setores da sociedade brasileira de cultivar um ódio irracional ao capitalismo, desde jornalistas e congressistas até universitários – que, segundo ele, numa crítica de viés bastante liberal, “criticam as injustiças sociais, mas acham que os recursos para fazer frente a elas devem sair do bolso dos outros, não do próprio”.
Apesar de tudo isso, FHC diz que aumentou, em montante geral, a carga tributária; afirma que não diminuiu fundamentalmente os gastos, e que usou os famigerados financiamentos do BNDES para sustentar indústrias nacionais em diversos setores. Nunca, também, quis privatizar a Petrobras, restringindo-se ao que chamou de “flexibilização do monopólio”, sujeitando a empresa à concorrência. Sem manifestar, fica claro, convicções liberais clássicas, libertárias ou conservadoras de nenhuma espécie, FHC assumia, no entanto, em sua perspectiva centro-esquerdista, a tarefa das privatizações (e da criação das suas agências reguladoras, em um modelo que muitos liberais também contestam, enxergando nelas um intervencionismo que distorce o espírito de concorrência), “não porque a empresa privada fosse necessariamente mais bem gerida do que a pública – embora na maior parte das vezes o seja -, mas porque o Estado se tornara desinvestidor líquido por falta de recursos”. Ele considerava urgente “liberar o Estado, ainda em franca crise fiscal, do pesado ônus de ser o único responsável pelos investimentos de infra-estrutura, graças aos monopólios constitucionais”, razão por que entendeu a necessidade de propor mudanças constitucionais que possibilitem maiores cortes de gastos e maior equilíbrio orçamentário – reformas que ainda são necessárias hoje. Mesmo sendo um social democrata, ele sabia que não poderia levar a cabo suas políticas sociais e assistenciais sem equilibrar as finanças. Interessante notar que, a seu ver, essas mesmas políticas, conquanto necessárias, foram pervertidas pelo regime que o sucedeu, que “deslocou o foco da questão do emprego e da renda”, bem como da “capacitação de pessoas para o trabalho e a vida”, desprezando as contrapartidas “que as pessoas devem oferecer em troca do recebimento desses recursos”, olhando apenas para a mera “distribuição” deles – um aspecto importante da sustentação populista do sistema de poder da Era PT, sem dúvida. Era PT em que, inclusive, se tornaram regra o “dirigismo econômico” e os “favorecimentos indevidos a setores, quando não a empresas, graças ao protecionismo e a empréstimos subvencionados do BNDES”, algo que, em suas próprias palavras, FHC temia que estivesse por trás dos interesses de órgãos empresariais que criticavam algumas das reformas de seu governo, e que mostraram seu desapreço pelo ambiente de liberdade econômica ao se tornarem cúmplices do esquema lulopetista.
Não somos tucanos, não somos sociais democratas, e acreditamos poder criticar muitas das atitudes e posições de Fernando Henrique; mas não estamos no número dos maniqueístas, que apenas condenam e deixam de reconhecer as possíveis qualidades e vantagens. Para mantermos um registro preciso da história e entendermos melhor o que nos acontece hoje, devemos situar o legado dos personagens mais expressivos da maneira mais reta e justa – sem endeusá-los além da conta, sem “satanizá-los” covardemente. FHC seria, no universo político, um adversário da nossa concepção particular; entretanto, um adversário que poderíamos respeitar e com que seria possível dialogar, ao contrário do socialismo rústico e autoritário das demais legendas de esquerda que, infelizmente, dão ao quadro partidário nacional os seus diversos tons de vermelho.
PS1: O diretor de relações com o mercado do Instituto Liberal, Paulo Figueiredo Filho, escreveu há algum tempo para o nosso site um pequeno artigo em que critica duramente o governo tucano. Vale ler para fazer um contraponto.
PS2: Chamou-me a atenção que, a respeito do começo de seu segundo mandato, FHC diz que “um dos líderes da oposição, Tarso Genro, ex-prefeito petista de Porto Alegre, chegou a publicar um artigo pedindo a interrupção de meu mandato, coisa que em outras épocas se chamaria de golpe, principalmente porque se tratava de governo recém-eleito, e com vitória no primeiro turno, e transcorrido menos de um mês de um mandato de quatro anos!”. Interessante comparar com a situação atual, em que, com uma porção de bases jurídicas e factuais, e já em pleno segundo semestre, os petistas reclamam que, diante das três maiores manifestações populares da história, pedir impeachment, cassação ou renúncia é uma atitude golpista. Cada vez que se investiga mais, menos espaço permanece para ter algum respeito pelo PT.