“Grandes Momentos do Parlamento Brasileiro”: o contraste entre o passado e o presente da política nacional

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SENADO0001Chegou-me às mãos o primeiro volume de uma série de dois, intitulada Grandes momentos do Parlamento brasileiro, produzida no final dos anos 90, quando Antônio Carlos Magalhães era o presidente do Senado. Com muito contentamento, encontrei os dois volumes em áudio na Internet, documentando pronunciamentos de figuras históricas, de diferentes partidos e tendências, expressando aspectos importantes da cultura política nacional.

São muitas as pérolas… As ácidas críticas do memorável Afonso Arinos, da UDN, ao governo de Vargas após o atentado de Toneleros; a longuíssima e espirituosa defesa de Carlos Lacerda, quando alvejado pela suposta divulgação de códigos secretos; as renúncias e trocas de cargos de inúmeras figuras de relevo tanto da UDN, quanto do PTB e do PSD; a sessão solene de posse de João Goulart; as discussões intensas acerca da adoção do sistema parlamentarista em 1961 e acerca da renúncia de Jânio Quadros; a agitação esquerdista de Francisco Julião; a relativização da propriedade em razão da sua “função social” de Vieira de Melo, em sua defesa da reforma agrária, com intervenções ásperas do udenista Aliomar Baleeiro; os discursos em homenagem a falecidas lideranças, como Juscelino Kubistschek e Ulysses Guimarães, feitas eventualmente por outras lideranças históricas, como Tancredo Neves. Há até a transcrição do rebuliço célebre de 1964, quando o presidente do Congresso Auro de Moura Andrade declarou vaga a presidência da República, abrindo caminho para o regime militar, e as discussões acerca do sistema bipartidário e da estrutura centralizadora e autoritária do regime. Em resumo, uma seleção de tesouros que demonstram como os agentes históricos se comportaram e se relacionaram, no ambiente parlamentar, durante as maiores crises de nossa trajetória como país, desde os anos 50 até os 90.

Que deduzimos desse material? Em primeiro lugar, os aspectos negativos. Nossos problemas atuais, por mais diferenciada que seja a formatação, sua organização e intensidade, não mudaram totalmente em natureza. Podemos ver, mesmo em seu empolgado e valoroso discurso contra a corrupção e o autoritarismo de Vargas, Afonso Arinos, por exemplo, se ufanar do apoio ao monopólio estatal do petróleo, que a UDN não deixou de sustentar, através de várias de suas alas. Mesmo no partido de disposições mais liberais e conservadoras da época havia muitos que não escapavam, aqui ou ali, do nosso estatismo paralisante. Entre os discursos transcritos, apenas o de Carlos Lacerda, em uma defesa apaixonada da livre iniciativa, e o de Roberto Campos, com suas menções positivas ao economista Eugênio Gudin e sua exortação a bandeiras liberais, mais ou menos explicitamente, escaparam às tradições desenvolvimentistas e nacionalistas das nossas classes políticas – isso sem que se esqueçam as divergências ácidas que tiveram no governo Castelo Branco, mencionadas também por Campos em sua fala selecionada de 1983, constante do segundo volume. Também não podemos desconhecer as brigas feias que ocorriam – conta-se que com direito ao saque de armas, embora o material aqui abordado não referencie isso -, a despeito de nossos parlamentares de ontem não serem, em sua maioria, animalescos como os de hoje, que protagonizam espetáculos circenses quase toda semana.

Entretanto, obrigo-me a reconhecer: muitos de nossos parlamentares antigos eram oradores extraordinários, com referências nítidas a representantes ainda mais antigos de nossas melhores tradições políticas, como Rui Barbosa, ícone da Velha República, e a ícones do pensamento e da cultura ocidentais. Em seus discursos, externava-se uma concepção geral de mundo, uma apreciação dos fatos do seu tempo e uma intenção explícita em inserir o Brasil no cenário da civilização planetária. Encontramos esses elementos até, por exemplo, em um grande discurso do petebista San Tiago Dantas, que não deixa de condenar o comunismo em sua explanação. Nisso visivelmente decaímos; o discurso do então ex-udenista Teotônio Vilela em homenagem ao antigo adversário morto, o presidente Juscelino Kubitschek, é peça de notável conteúdo emocional que nossos melhores oradores de hoje não reproduziriam. O consenso temático abjeto, a atmosfera ideológica criminosamente agredida pelo gramscismo e a consequente ausência de virilidade das oposições impedem que vislumbremos essas qualidades na atualidade.

Numa coisa parecemos bem iguais, ontem e hoje: essas peças de brilhante oratória, em muitos aspectos, permaneciam alheias aos cruentos matizes da realidade. Mesmo no Império, quando tivemos brilhantes figuras, os parlamentares se esgrimiam com soberana elegância, mas pairavam sobre um país manchado pela escravidão. Ainda assim, acredito firmemente que lideranças de peso e expressão, que saibam traduzir em palavras organizadas os dramas do país e do mundo e reverberem as aspirações populares, sabendo transmitir com emoção e apelo as verdades racionais que defendemos, são indispensáveis e necessárias para o sucesso de um movimento de retração do Estado no Brasil. Nesse sentido, mergulhar em nossa cultura política e no comportamento das antigas lideranças populares, desvitalizadas pelo regime militar, pode ser muito útil.

Há um pedaço pequeno do primeiro volume que gostaríamos de destacar. Em seu discurso, Carlos Lacerda extrai, do livro América Latina, continente em ebulición, de Eudocio Ravinez, uma análise em doze pontos do que o autor chamava de “justicialismo”, em referência ao caso argentino, mas seria o que nós chamamos de “populismo” caudilhesco latino-americano. Nesse resumo, define-se que os populistas “proclamam a necessidade de anular a influência das oligarquias, assim como a intromissão dos consórcios estrangeiros na política interna e uma repartição da riqueza mais concorde com o reinado da Justiça Social”; o “movimento operário” se torna “engrenagem do aparelho do Estado”; seu movimento se gesta nas grandes cidades e não na periferia, assemelhando-se ao fascismo em sua organização econômica; são de viés “esquerdista”, não proletário, unicamente, mas como o populismo “não é capaz de formular, por si mesmo, uma doutrina autônoma, desemboca na doutrina marxista e na adoção de sua filosofia de luta de classes”, adaptando sua retórica ao cenário de miséria na região; exploram os “sentimentos nacionais contrários ao espírito de lucro e à intromissão regressiva na política interna dos consórcios estrangeiros”, levando a um “nacionalismo xenófobo, antiianque, essencialmente artificioso e demagógico”, pervertendo os “melhores sentimentos de orgulho nacional”; “fizeram-se empresários ardorosos da industrialização intensa dos planos quinquenais (ou outros) e da transformação do Estado em empresário industrial, pouco se cuidando das possibilidades concretas de investimento do País, da mesquinhez do mercado interno”; “impuseram, com maior ou menor disfarce, o regime do partido único”, com “tolerância dosada, outorgada, como privilégio, a grupos subjugados e domesticados para manterem, através dessa aparência, um simulacro de vida democrática”; caracterizaram-se “pela tendência à expansão política para fora do País, sempre ao amparo da fraternidade latino-americana e da necessidade de união dos seus povos”; fizeram-se, por fim, campeões “do intervencionismo estatal na economia”, tendo sido sua norma “uma drástica intervenção do Estado (…) tanto porque assim espera chegar mais depressa à administração da Justiça Social, quanto porque o dirigismo econômico converteu-se em poderoso instrumento de jugulação de toda força opositora, em arma absolutista para subjugar, para corromper e para outorgar favores”.

Perguntamos: não é muito familiar, em boa parte idêntico, ao que vemos acontecer hoje na mesma região? Não é uma descrição atualíssima do DNA do petismo e do bolivarianismo, devendo ser apenas incrementada com o maior radicalismo ideológico e o ambiente ainda mais culturalmente enfermo que vemos hoje? Em certa medida, caminhamos muito pouco. Muito mais, portanto, nos serão úteis as lições oferecidas pelos que vieram antes de nós, quer do ponto de vista de seus acertos, quer do ponto de vista de seus erros.

 

 

 

 

 

 

 

 

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Lucas Berlanza

Lucas Berlanza

Jornalista formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), colunista e presidente do Instituto Liberal, membro refundador da Sociedade Tocqueville, sócio honorário do Instituto Libercracia, fundador e ex-editor do site Boletim da Liberdade e autor, co-autor e/ou organizador de 10 livros.

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