Já raiou a liberdade? Ecos do Ipiranga
7 de setembro de 1822, América Portuguesa. O imenso território sob controle lusitano vinha de numerosos conflitos regionais contra a autoridade da Coroa. Todos suprimidos. Um deles, a famosa Inconfidência Mineira, realizou-se em revolta contra o pagamento do “quinto”, imposto considerado excessivo pelos revoltosos. Em 1808, em fuga de Napoleão, o rei D.João VI se instalou na colônia e abriu os portos ao comércio com as nações amigas. A América Portuguesa foi elevada à categoria de Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves.
A convulsão política forçou D.João a retornar a Portugal, deixando por aqui o príncipe Pedro. As resoluções na metrópole apontavam para um rebaixamento da posição conquistada pela colônia. Isso era inaceitável. O resto, todos conhecemos… Atendendo a pedidos, D.Pedro proclamou a independência do Brasil, que se tornaria, a partir de então, um novo país, sob a égide da monarquia constitucional. Um dos idealizadores do projeto de emancipação era José Bonifácio, tido por “Patriarca da Independência” ou “pai-fundador” da nação, com uma proposta conceitual de inspirações liberais e conservadoras. Já se vê no conteúdo de princípios que se tentava implementar uma preocupação em erguer “barreiras inacessíveis ao despotismo”, como discursou D.Pedro ao propor a feitura da Constituição, “quer real, aristocrático, quer democrático”. No pensamento de muitos dos políticos e das pessoas que articulavam a criação de um Estado nacional, havia o desejo de uma conciliação da ordem e da liberdade, estabelecendo-se pesos e contrapesos aos poderes e atribuições de instituições e indivíduos. Diga-se de passagem, estavam mais conscientes que os modernos propagandistas da “democracia radical e direta”, que, tentando consolidar na prática suas utopias, no máximo conseguiriam criar as condições para nos transformarmos em uma Venezuela ou uma grande Cuba – que, para alguns, são democráticas; apenas praticam uma “democracia diferente”. Pois sim…
A realidade, porém, não correspondeu aos melhores sonhos. Aquele imperador esteve no meio de um amplo conflito entre projetos rivais de um Estado que ainda estava em gestação, chegando a fechar a primeira Constituinte – o que foi apenas o prenúncio de um governo de tensões e complicações, que culminaria em uma abdicação em 1831. Depois, adveio o Período Regencial, com mais turbulências, muitas delas reproduzindo as constantes contradições entre os anseios de agigantamento por parte do Estado central e a maior autonomia regional tão reivindicada, até assumir D.Pedro II.
O segundo reinado foi a fase de maior estabilidade institucional no Brasil, sendo mantida a Constituição de 1824 durante todo o tempo. Postos de lado os ataques dos críticos do período, com seu tradicional exagero nas tintas, mas também se distanciando das loas rendidas pelos simpatizantes, em um ponto podem todos concordar: a mancha da escravidão. Desde Bonifácio até a princesa Isabel, houve quem entendesse que a escravidão era desumana e seria impossível que o Brasil brilhasse em seu destino como nação enquanto seres humanos estivessem sujeitados uns aos outros e as mais cruciais liberdades fossem aviltadas. Mas foi muito tardio o sucesso em eliminá-la de nossos quadros. A Lei Áurea veio apenas em 1888 e, depois dela, o golpe militar que transformou o país em uma República. República que, naqueles primeiros anos, já mostrava qual seria a tendência: o governo do Marechal Deodoro foi muito autoritário, como o foi toda a fase da Espada.
Depois disso, a República Velha prosseguiu, com os acordos das oligarquias e os votos de cabresto; Revolução de 30, a ditadura de moldes fascistóides de Getúlio Vargas, a manutenção da máquina por ele construída e sua consequente eleição em 1950, culminando em seu suicídio em 1954; seguidos governos populistas, com direito a uma renúncia presidencial, a uma disputa de interesses em torno da questão presidencialismo versus parlamentarismo; um movimento que, em 1964, dá início a uma nova fase de governos controlados pelos militares, num regime autoritário que, sobretudo sob Geisel, infla a máquina do Estado e cria um sem-número de empresas estatais. Vem a redemocratização em 1985; o primeiro presidente eleito, por caprichos do destino, morre antes de assumir, sendo substituído pelo vice. O presidente seguinte, enfim eleito e empossado, é derrubado por um impeachment. Todos tentando enfrentar uma situação de convivência crônica com inflação e crises, adotando modelos equivocados de solução.
Por ironia, coube a um governo social-democrata, de um molde mais civilizado, a atribuição de reduzir essa máquina gigante do Estado, de permitir um relaxamento das amarras impostas pelo Leviatã. Prosseguindo o Plano Real iniciado com Itamar Franco, os oito anos de governos tucanos estabeleceram o tripé macroeconômico e elevaram o país a outro patamar. Não se tornaram, por isso, grandes propagandistas da liberdade; o que fizeram adveio de uma sensatez pragmática que seria necessária mesmo para que fosse viável estabelecerem o tipo de assistencialismo com que ideologicamente se afinizam. De qualquer modo, sinalizaram com possibilidades melhores para um país que até hoje colhe bons frutos disso, sem se aperceber. E tanto não se apercebe que tem apostado no socialismo petista, que representa não apenas um total retrocesso em direção ao agigantamento coletivista das forças centrais sobre as liberdades do indivíduo – no que diz respeito a suas políticas externas e internas -, como um movimento muito mais radical nesse sentido que a maioria dos que foram anteriormente apresentados. Relembrando os inconfidentes mineiros lá do começo, que não diriam hoje, diante dos impostos muito mais abusivos?
Em setembro, celebramos o aniversário da independência deste nosso lindo torrão natal, que carrega toda essa conturbada bagagem. De todos, serei eu o último a menosprezá-lo, e a negar que tenha valores e bons nomes em seus breves séculos de existência. Rejeito fortemente a ideia de que devamos ter vergonha de sermos brasileiros. Justamente por amar esta nação verde e amarela, porém, é que desejo vê-la melhor, e não posso compactuar com quem se cega às terríveis mazelas que nos acometem, e que têm raízes muito profundas e difíceis de arrancar. Dizia o hino imperial, hoje consagrado como referente ao ato fundante da pátria: “já raiou a liberdade no horizonte do Brasil”. Experimentávamos, então, nossa emancipação política de Portugal; mas, em nossa trajetória histórica posterior, como vemos, enfrentamos uma sucessão de reviravoltas bruscas que preservaram algumas constantes básicas, em parte porque por elas foram movidas: um apreço antiliberal por delegar todo tipo de função ao Estado e uma cultura paternalista que nos emperra o crescimento. No dizer de Roberto Campos, “continuamos a ser a colônia, um país não de cidadãos, mas de súditos, passivamente submetidos às ‘autoridades’ – a grande diferença, no fundo, é que antigamente a ‘autoridade’ era Lisboa. Hoje é Brasília”.
A data deve ser um chamamento a um novo e mais amplo grito de liberdade. Precisamos soltar esse grito aqui, em nossas casas, em nossas comunidades, em todos os espaços – sobretudo, precisamos soltá-lo nas urnas. Não um grito às margens do Ipiranga; não um grito que, simbolicamente, nos liberte de uma nação estrangeira – apesar de que, de certo modo, também hoje nos vejamos por vezes submetidos pelos interesses ideológicos de nossos governantes aos caprichos de vizinhos pouco afeitos à democracia! Precisamos, isto sim, dar um grito que nos liberte das amarras de nosso próprio Estado e, em última instância, de nós mesmos, em nossa insistência quase ilimitada em clamar pela presença dele – que, via de regra, acaba sendo ineficaz, apenas aumenta o problema e terminará por nos sufocar. “Independência ou morte”!