“Minha Formação”: o legado de Joaquim Nabuco
Quando se vê defrontado pela crise moral e institucional de nossos tempos, o cidadão brasileiro realmente interessado nos rumos do país se vê carente de referências nacionais de valor. A descaracterização mal-intencionada de nosso passado, promovida em materiais didáticos e pregações políticas rasteiras, é a grande culpada por isso. O Brasil, ainda belo e admirável aos olhos, mas sofrendo os extremos efeitos de um processo de anos de propositada confusão e imoralidade, já foi berço de gigantes, de figuras extraordinárias, de que não podemos esquecer. Nas páginas de “Minha Formação”, seu livro de memórias e reflexões, podemos penetrar a intimidade de um dos maiores brasileiros de todos os tempos: Joaquim Nabuco (1849-1910).
O diplomata, político e jurista, formado na Faculdade de Direito do Recife, deixou para a posteridade, além do legado inquestionável da campanha abolicionista – cumprindo papel fundamental na eliminação de uma das mais tristes páginas da história brasileira, a escravidão –, em que se portou como incansável guerreiro da liberdade, as páginas que expressam sua genialidade e permitem dividir com os patriotas de hoje as preocupações do construtor de ontem. Afinal, tal como José Bonifácio e outros valorosos nomes, Nabuco é um construtor do Brasil. Construtor de uma realidade, de um país onde as mais diversas etnias passam a conviver sem uma sujeição de amparo legal de umas perante as outras – ainda que as medidas de nosso atual governo tentem promover divisões artificiais -, e construtor de um sonho – um sonho ainda não realizado, de fazer do Brasil uma nação avançada, próspera e consciente de si. “Minha Formação”, que reúne anotações de Nabuco sobre sua trajetória de vida até 1899, é um livro que não apenas informa. Ele inspira, emociona, faz o leitor se sentir motivado por viver no mesmo torrão em que uma alma como aquela deu seus luminosos primeiros passos.
Politicamente, Nabuco se define como um “liberal inglês”. “Quando entro para a Câmara” diz ele, “estou inteiramente sob a influência do liberalismo inglês, como se limitasse às ordens de Gladstone; esse é em substância o resultado de minha educação política: sou um liberal inglês – com afinidades radicais, mas com aderências whigs – no Parlamento brasileiro; esse modo de definir-me será exato até o fim, porque o liberalismo inglês, gladstoniano, macaulayiano, perdurará sempre, será a vassalagem irresgatável do meu temperamento ou sensibilidade política”. Em um cenário nacional monárquico dividido em dois grandes partidos, os chamados Partido Conservador e o Liberal, Nabuco esteve no primeiro e terminou a vida pública no segundo, e teceu considerações elogiosas a figuras de ambas as legendas.
Ao ler as páginas de “Minha Formação”, a experiência é em alguns aspectos similar à de ler “Reflexões sobre a Revolução na França”, de Edmund Burke, a quem Gladstone, referenciado por Nabuco, muito apreciava; ambos são confessos monarquistas, sem avançar em que determinadas formas empíricas de governo sejam essencialmente superiores a outras, mas compreendendo a importância da prudência, da adequação de princípios abstratos às experiências históricas e realidades concretas de cada povo e lugar. E Nabuco conhecia bem o espírito anglo-saxônico, fornecendo observações bastante pessoais sobre a Inglaterra e os Estados Unidos.
Nas linhas de Nabuco sobre a Família Real, como no famoso trecho de Burke a respeito da rainha de França, encontra-se o mesmo cavalheirismo, a mesma elegância, o mesmo “romantismo” que, particularmente, nos parece, a despeito de qualquer limitação que possa ter, algo sedutor e comovente. A mesma aversão a radicalismos destrutivos e ânsias por rupturas bruscas, típica do que alguns convencionaram chamar de conservadorismo político moderno, dá as caras em ambos. Isso motivou Nabuco a se manter sempre afastado dos anseios republicanos que insuflaram algumas correntes de sua geração.
Qualquer que seja a nossa visão sobre tudo isso, porém, o abolicionismo é maior que qualquer outro elemento em sua vida. Ele próprio reconhece que “a feição política tornar-se-á secundária, subalterna, será substituída pela identificação humana com os escravos e esta é que ficará sendo a característica pessoal, tudo se fundirá nela e por ela. Nesse sentido é a emancipação a verdadeira ação formadora para mim, a que toma os elementos isolados ou divergentes da imaginação, os extremos da curiosidade ou da simpatia intelectual, os contrastes, os antagonismos, as variações de faculdades sensíveis à verdade, à beleza, que os sistemas mais opostos refletem uns contra os outros, e constrói o molde em que a aspiração política é vazada, e não ela somente, a inteligência, a imaginação, os próprios sonhos e quimeras do homem”. Libertar os escravos, tornar todos os habitantes do Brasil efetivamente seus cidadãos, tornou-se a causa da vida de Joaquim Nabuco. Com sua elogiosa oratória, sua bagagem cultural vasta e sua sensibilidade notável – e, nas páginas de “Minha Formação”, entramos em contato com um pouco de cada uma -, ele foi até o Vaticano se encontrar com o papa para pedir um manifesto contra a escravidão, o que relata em detalhes.
É imperioso revolvermos os porões do passado e encontraremos a ordem liberal sendo defendida por grandes figuras de nosso país, que conhecemos apenas de nome e, muitas vezes, são mencionadas e homenageadas por cultistas de totalitarismos e extremismos que jamais contariam com seu aplauso. Joaquim Nabuco é nome de ruas, é figura retratada em quadros e estátuas. No dia 2 de junho deste ano, foi inscrito no Livro dos Herois da Pátria. Uma das pouquíssimas atitudes positivas de nossa atual mandatária do Executivo, cujo nome não mencionaremos por julgarmos que não merece constar de um artigo em homenagem a um verdadeiro homem público, com todas as letras e “pingos nos is”. Nabuco faz parte do norte que precisamos revisitar, da inspiração que precisamos resgatar para colocarmos a bandeira verde e amarela em seu devido destino, em sua legítima direção.
Deixemos esse grande baluarte nacional da liberdade nos brindar com uma perfeita síntese de sua própria vida:
“Qualquer que seja a verdade teológica, acredito que Deus nos levará de algum modo em conta a utilidade prática de nossa existência e, enquanto o cativeiro existisse, estou convencido de que eu não poderia dar melhor emprego à minha do que combatendo-o. Essa vida exterior, eu sei bem, não pode substituir a vida interior, mesmo quando o espírito de caridade, o amor humano, nos animasse sempre em nosso trabalho. A satisfação de realizar, por mais humilde que seja a esfera de cada um, uma parcela de bem para outrem, de ajudar a iluminar com um raio, quando não fosse senão de esperança, vidas escuras e subterrâneas como eram as dos escravos, é uma alegria intensa que apaga por si só a lembrança das privações pessoais e preserva da inveja e da decepção.”
Pequenos que somos, que vejamos nessas palavras uma exortação para agir. Por pouco que façamos em nome da liberdade e dos bons princípios, intenso nos é o ganho, qualquer que seja a nossa crença, pelo menos para que nossos descendentes não nos vasculhem no passado e digam: eles nada fizeram. Joaquim Nabuco fez. E nós, faremos?
Parabéns pelo belíssimo artigo e pela homenagem a este heroi nacional.
Lucas,
Compartilho a sua admiração por Nabuco, assim como outros vultos forjados no império e que enobreceram a cultura brasileira nos primórdios da república. É triste ver como entre a nossa juventude essa e outras figuras são ignoradas para dar lugar a falsos heróis e a uma historiografia deformada. Quanto à nossa “governanta”, com certeza nunca leu Nabuco, se ler não vai entender, se comentar prefiro nem escutar, mas deve tê-lo homenageado apenas como forma de bajular os pernambucanos.
A crise moral não é meramente brasileira. A corrupção completa da idéia de ética através de morais sentimentaloides, ou “politicamente corretas” exatamente pelo valor atribuido ao sentimentalismo, tem origem numa estratégia de Poder. Quando torna-se moralmente bonito “julgar com o coração” fundamentando-se tal “reflexão” na entonação comovente com que é feita esta afirmação, é sinal que a noção de decência foi perdida e de fato “TUDO TORNA-SE PERMITIDO” com base em tal moral “que fala ao coração” sem preocupar-se com razão.
Animais costumam transmitir emoções e assim se entendem. O rosnado exibindo os dentes, por exemplo, demonstra desaprovação. A comunicação é então feita através da expressão corporal e da entonação com que se produz os sons.
Essa heranpça animalesca se tem apossado da espécie humana que, por conta de perorações ideológicas, vem privilegiando a forma de comunicação dos animais ditos irracionais. As palavras variam de significado conforme a expressão e a entonação com que são pronunciadas, mesmo que atribuidas a fatos diversos de seu significado original apenas para aproveitamento de seu conceito já intuitivo. Da mesma forma que usa-se palavras, com conceitos já cristalizados, em certo frenesi atribuitivo para associa-las a fatos diversos daqueles que a originaram, também tem-se valido da ostentação de afetação emocional para alterar conceitos racionais associados a palavras. Bastam carinhas, bocas, caretas e tons verbais para atribuir significados e conceitos às palavras. A realidade tem sido superada por palavras que a deveriam descrever, mas que assumem a tarefa de produzi-la como versão e não mais para descreve-la como fato.
Assim criam-se “prêmio Stalin da paz”, o “orgulho de servir”, o “altruísmo egocêntrico”, o “ódio amoroso”, o “crime de legitima defesa” e etc.. Então conceder o Nobel da paz a um terrorista responsável por inúmeras mortes (Arafat) glorificando tal “heroi” é tão natural quanto ver maníacos propondo que as FARCs se tornem um partido político na Colombia e ao mesmo tempo clamarem contra uma ditadura exigindo punição. Sendo que as referidas FARCs produziram dezenas de milhares de mortes de inocentes em atentados à bomba, sequestros, assaltos e assassinatos, bem como terem praticado as mais cruéis e duráveis torturas pelo simples objetivo de causar sofrimento. Enquanto a tal dita dura condenada por estes maníacos apenas resultou em poucas centenas de celerados tombados no combate que exercitavam para implantarem uma ditadura ideológica genocida.
Nessa subversão da razão patrocinada pela moral sentimentalóide ideológica, que invoca supostos fins como justificativas para os meios que alegadamente supõe-se conduzir a tais fins, tudo torna-se uma ferramenta. Afinal julgar é imoral e portanto TUDO PODE SER PRATICADO SEM A REPULSA QUE MERECERIA NUM JULGAMENTO RACIONAL.
Tudo passa a ser justificado e fundamentado com rosnados, grunhidos, exibição de dentes ou carinhas simplórias. A comunicação já não se faz para a exposição de fatos, mas sim para a exposição de sentimentos. O certo e o errado, a verdade ou a mentira, o justo e o injusto não mais decorrem dos fatos, mas da forma com que são emocionalmente transmitidos, não para serem julgados, mas apenas anuidos ou repelidos segundo a comoção produzida como versão.