O liberalismo comentado por Roger Scruton em “Como ser um conservador”
Em mais uma iniciativa da editora Record, de Carlos Andreazza, trazendo ao público brasileiro obras da literatura política liberal e conservadora – isto é, de todo o campo filosófico-político que se encontrava profundamente escasso no cenário nacional -, foi lançado o livro Como ser um conservador, publicado pelo filósofo inglês Roger Scruton no ano passado, em tradução do sempre excelente Bruno Garschagen.
Em seu livro, o pensador, conhecido por suas críticas pungentes ao desprestígio da beleza pela chamada “arte moderna”, descreve o que ele entende ser uma legítima postura política conservadora, tendo Edmund Burke como uma de suas referências principais. Afastando posturas apenas “reacionárias”, no sentido radical e negativo usado por João Pereira Coutinho, ele sustenta que o pensamento burkeano surge no bojo do Iluminismo e não pode consistir meramente em uma recusa obscurantista à modernidade e à razão (às quais Scruton dá o devido valor), mas em uma crítica calcada na prudência, na “consciência de que as coisas admiráveis são facilmente destruídas, mas não são facilmente criadas”, especialmente aquelas que “nos chegam como bens coletivos: paz, liberdade, lei, civilidade, espírito público, a segurança da propriedade e da vida familiar, tudo o que depende da cooperação com os demais”. Seu pensamento conservador acredita na importância de determinados valores morais como algo que embasaria o próprio sucesso de uma economia de mercado, na necessidade de se conferir importância aos aspectos culturais na vida social e não meramente a construções teórico-econômicas, e no apreço ao Estado-nação ou à Pátria como algo que fortalece a associação e o envolvimento interessado nos destinos de uma sociedade – sem descambar para uma hostilidade entre as nações e um nacionalismo enfermo.
Independente de nossa afinidade pessoal com essa visão, jamais ocultada – embora não nos identifiquemos muito com certas consequências bucólicas que autores nessa linha que Scruton sustenta parecem expressar às vezes -, o que pretendemos destacar, de par com a recomendação da leitura desse filósofo contemporâneo importantíssimo, é um pouco de sua apreciação do liberalismo. Uma das primeiras coisas que Scruton atesta, com menção explícita aos grandes austríacos Ludwig von Mises e Friedrich von Hayek, é que “a propriedade privada e as trocas voluntárias são características necessárias de qualquer economia de grande escala”, elementos indispensáveis para as sociedades em que pessoas são dependentes de outras, inteiramente desconhecidas, a fim de que haja “coordenação econômica”. Scruton ressalta a crítica austríaca ao cálculo de preços no socialismo, a partir da consciência de que o conhecimento necessário à atividade econômica está disperso na sociedade e não pode ser concentrado em mãos de um poder centralizado, disposto a um planejamento que, fatalmente, se torna tirânico e ineficaz. Scruton, ao comentar a defesa hayekiana da ordem espontânea, apenas reforça que o austríaco não afirmou que sua aplicação à economia seria “suficiente para gerar coordenação econômica ou estabilidade social”, acreditando na necessidade de outras aplicações dessa mesma ordem, como a “tradição moral e legal”. Com base em Hume, Adam Smith, Burke e Oakeshott, Scruton vê na interação de uma ordem legal e uma economia de mercado, não nascidas de um planejamento racional central, mas do seio livre da própria sociedade através dessa ordem espontânea, o melhor caminho que, se eventualmente está degradado, em boa medida isso seria “resultado da interferência estatal”, sendo, “por certo, improvável ser por ela solucionada (essa degradação)”.
Em seguida, Scruton exorta o seu leitor a reconhecer “o grande valor do liberalismo que, desde o seu nascimento no Iluminismo, tem se esforçado por nos incutir uma distinção radical entre ordem religiosa e ordem política, e a necessidade de erigir a arte de governar sem fiar-se na lei de Deus”. Por aí se vê que o pensamento de Scruton nada tem que ver com concepções teocráticas, nem com um irracionalismo irresponsável. O que ele combate, tal como Burke e Hayek combatiam, é a “arrogância racionalista”, que, na realidade, é tão “irracional” quanto o desprestígio da razão abertamente praticado. Scruton entende o liberalismo como a visão segundo a qual uma sociedade calcada na “ordem consensual”, onde decidimos o que norteará nossas relações com os outros livremente (salvo em exceções críticas) “só é possível caso os membros individuais tenham soberania sobre as próprias vidas”, o que depende – falamos de um conservador britânico e não de um anarcocapitalista – de um Estado que garanta “os direitos, tais como o direito à vida, à integridade física e à propriedade, protegendo, desse modo, os cidadãos de violação e coação de terceiros, incluindo da violação e da coação praticadas pelo Estado”.
Scruton dá grande destaque a uma crítica tipicamente burkeana, ressaltada por teóricos liberais e autores como Tocqueville: o alerta para os riscos da “tirania da maioria”. Para ele, o “bom cidadão é aquele que sabe quando o voto é a forma equivocada de decidir uma questão, bem como quando o voto é a forma correta”, tendo sido “o grande presente do liberalismo político para a civilização ocidental” a “elaboração de condições em que a proteção é oferecida ao dissidente, e há a substituição da unidade religiosa pela discussão racional entre os antagonistas”. Não cabe, portanto, acreditar que um democratismo radical de inspirações rousseaunianas, levando em consideração apenas os anseios e afobações de uma “maioria”, possa conduzir uma sociedade ao sucesso; tanto o pensamento conservador de Scruton quanto os de teóricos liberais apelam para a República aristotélica, com limitações institucionais para todos os tipos de poderes – inclusive, mesmo contrariando o politicamente correto, aquele que vem da “maioria”, resguardando os direitos dos indivíduos e grupos minoritários a existir e expressar suas posições. Esta última questão, vale frisar, não pode ser confundida com a concessão de privilégios a essas minorias, como a Nova Esquerda, também alvo dos ataques de Scruton, vêm se notabilizando por sustentar.
Na mesma linha, comentando a tradição constitucional anglo-americana, Scruton enaltece nela as “cláusulas pétreas da jurisprudência liberal: a doutrina da separação de poderes, a teoria da independência do poder judiciário e a ideia processual de justiça segundo a qual todos os cidadãos são iguais perante a lei e a justiça deve ser imparcial”; alerta, no entanto, para uma “inflação de direitos” que a esquerda moderna estaria aplicando a esse norte primoroso que o pensamento liberal clássico lega à humanidade, apoiando a defesa intransigente desses “privilégios” de que acima falamos. É assim que, acima da própria condição de ser humano, se colocam qualificações específicas e grupais como a cor da pele ou a orientação sexual, como critérios para o estabelecimento de leis e benefícios a serem concedidos pelo agigantado Estado de bem-estar social (o welfare state), também objeto das críticas de Scruton em seu trabalho. Essa perversão, que acaba por encorajar um policiamento invasivo e paranoico do discurso alheio e demonizar tudo que é “tradicional”, “religioso” ou visto como “majoritário” no patrimônio da cultura ocidental, agride o “propósito original por trás da invocação dos direitos naturais do liberalismo”, que era “a proteção do indivíduo do poder arbitrário”. Scruton então cita Locke e sua defesa de que qualquer pessoa manteria seus direitos como indivíduo “independentemente do grupo ou classe a que pertencesse”. Assim, “em vez de limitar o poder do Estado, os supostos direitos humanos começaram a aumentar esse poder e a chamar o Estado para se envolver, do lado dos favorecidos, em todos os conflitos. Desse modo, os direitos, que para um liberal são a condição sine qua non de uma política pacífica, tornaram-se uma declaração de guerra contra a cultura da maioria”.
Atacando a teoria ingênua – ou criminosa – de que o socialismo se utiliza para sustentar o agigantamento do Estado, Scruton lembra que esse mesmo Estado “cria renda sobre os ganhos dos pagadores de impostos e a oferece aos seus clientes privilegiados”, criando-se assim, em alguns países, uma nova “classe do ócio”, que se ancoraria no restante da sociedade para se sustentar. Não soa familiar? Na visão de Scruton, a maior falácia presente no socialismo é a visão da vida em sociedade como “aquela em que todo sucesso de um é o resultado do fracasso de outrem”. Essa percepção estúpida do processo de geração de riquezas fica clara na célebre frase de outro conservador britânico, Winston Churchill, que define o socialismo como “a filosofia do fracasso, o credo da ignorância e o Evangelho da inveja”.
Em seu livro, o filósofo britânico descreve sua concepção do conservadorismo como atitude em política, o que, a alguns de nossos leitores mais libertários, pode não ser interessante mais do que por mera curiosidade; no entanto, certamente todos os defensores da liberdade, em qualquer das correntes específicas dentro desse espectro, ficarão contemplados pelo arguto libelo de Scruton contra as distorções produzidas pela esquerda nos últimos séculos de conceitos tão caros ao pensamento ocidental, como “liberdade” e “direito”.