Privatização no fascismo e no nacional-socialismo
As Privatizações Fascistas: Regulamentação como substituto da Apropriação
A política econômica do regime fascista italiano misturava medidas incrementando discricionariamente o nível de intervencionismo sobre a economia – notadamente regulamentações sobre o mercado e condições de trabalho e extensão da proteção social, participação ativa no mercado bancário e financeiro e na política industrial, sobretudo em setores considerados estratégicos – e medidas que aparentemente poderíamos descrever como dignas de um ferrenho conservadorismo fiscal, que buscavam alcançar fins orçamentários precisos e objetivos políticos menos evidentes. A verdade é que, de forma geral, as políticas mudaram em função do tempo e conforme se apresentassem as urgências políticas ou econômicas.
Uma das políticas que poderíamos classificar como pertencente à segunda categoria de medidas foi a retribuição da propriedade de jure de algumas indústrias até então organizadas em monopólio público, as chamadas “privatizações fascistas”. Estas políticas foram conduzidas por Alberto De’ Stefani, Ministro das Finanças do regime, e iam visivelmente de encontro a um discurso antiliberal e mais populista que havia abundado entre os fascistas, políticas estas que vão terminar servindo para que, ulteriormente, muitos desavisados terminem por se convencer – mediante influência e contribuição não negligenciável de uma estratégia política esquerdista tendo justamente este propósito – de uma associação supostamente evidente entre liberalismo econômico e fascismo político.
Mesmo após a desistência da privatização das estradas de ferro – entre outros motivos devido à resistência dos sindicatos fascistas do setor ferroviário –, no período indo de1922 a 1925, primeiros anos do regime fascista, diversas indústrias e setores da economia que até então estavam sob propriedade pública foram progressivamente retribuídos a grupos e consórcios de empresas privadas. Além de ter paulatinamente instaurado políticas visando diminuir o fardo da fiscalidade, em seus primeiros anos o governo de Mussolini privatizou a indústria de fósforos, suprimiu o monopólio no setor de seguros de vida, leiloou empresas publicas do ramo da telefonia, privatizou parte da indústria siderúrgica e terceirizou mesmo a execução de alguns trabalhos e obras públicas.
Poderíamos nos perguntar, então, se teriam as políticas e privatizações fascistas sido moldadas e realizadas segundo uma inspiração abertamente liberal? Em nenhuma escala. Certamente o conservadorismo fiscal e busca da desburocratização e derrubada de monopólios públicos podem sim ser concebidos como iniciativas buscando melhor gestão da máquina pública e redução da ação dos governos sobre a economia.
Mas o que se fez durante o início do governo fascista foi uma tentativa de sedução política aliada a uma tentativa de enxugar e dinamizar a máquina pública para melhor controlar os setores estratégicos e refinanciar a capacidade de investimento público. Tudo isto, sem nenhum compromisso com a liberdade de entrada e a livre concorrência e, consequentemente, sem nenhum compromisso com o respeito efetivo da propriedade privada, liberdade associativa e, de forma mais abrangente, com os princípios da sociedade aberta e da democracia liberal.
O controle orçamentário e fiscal iria permitir que o governo retomasse investimentos em setores e atividades que acreditasse mais pertinentes, notadamente funções de soberania e infraestruturas. E se por um lado o fascismo seduzia os pobres e a classe média “garantindo” emprego e proteção social e regulamentações supostamente favoráveis aos trabalhadores, por outro lado, a sedução das classes altas se dava, entre outros, pela ajuda na construção e instauração de conglomerados nacionais (qualquer similaridade com outras políticas e outras épocas não é mera coincidência), pelas políticas de abatimento fiscal sobre pessoa física, sobre a propriedade, sobre as fusões e aquisições e trânsito de capitais (investimentos) estrangeiros, e por subvenções a determinados setores estratégicos, ou mesmo, pela redução de impostos sobre artigos de luxo.
Não obstante, as políticas de De’ Stefani não implicavam nenhum compromisso com a competição ou com a livre concorrência, ou a com a realização de políticas promovendo um liberalismo econômico intransigente. Segundo o próprio Ministro das Finanças italiano (em Bel 2009), que preferia não obstante a utilização do termo “reprivatização”:
“This is another clumsy word that has come into use. Although it is difficult to pronounce, it is steadily making its way. Reprivatization should mean a return to private initiative, rather than a return to economic freedom. To avoid confusion, this distinction must not be forgotten; otherwise economic liberalism could use reprivatization as a launch pad for having its own trafficking passed through…. That it is not possible to go back to economic liberalism and, thus, to competition, seems beyond dispute.”
O Estado fascista restringe a concorrência, limita fortemente a abertura de novas indústrias e regulamenta as atividades econômicas de forma a que beneficiem direta ou indiretamente o governo e mais precisamente o próprio partido. Seja através do controle de preços, ou através da substituição dos sindicatos de trabalhadores por sindicalistas do partido, ou pelas diretivas de produção ou pelas normas enquadrando a confecção dos contratos privados, ou através do financiamento direto de grandes grupos de bancos ou industrias; o Estado fascista participa diretamente das industrias que julga importantes para suas ambições políticas (ver aqui Estado de bem estar social) e militares. Neste contexto, as privatizações eram mais o reflexo da percepção de que para o próprio Estado e objetivos fiscais e políticos do governo, a iniciativa privada enquanto gestora dos “bens públicos” ou setores estratégicos aportava mais eficiência e produtividade.
Como sugeriu Germà Bel (2009), o governo fascista utilizou regulamentações e privatizações como substitutos. “Enquanto requisitava seu poder sobre a propriedade sobre os serviços privatizados, o governo fascista restringiu o controle sobre os mercados estabelecendo regulamentações mais restritivas, além de criar instituições dependentes dos governos para implementar as políticas regulamentárias.” (p. 16, traduzi) Por mais que o Estado tenha (notadamente através de órgãos como a Sonfidit, Imi ou Iri) a partir dos anos 30 efetivamente se angariado a tutela financeira e gestionária de boa parte das indústrias estratégicas, ele recusou até o fim qualquer rótulo de nacionalização.
E da mesma forma, como veremos, aconteceu no regime nacional-socialista alemão. Nunca se tratou de dar suporte à livre concorrência, ou redução do controle do Estado sobre a economia. Embora a gestão permanecesse estatutariamente sob tutela privada, as privatizações estabelecidas por regimes autoritários nunca se traduziram em políticas visando a reduzir o controle do Estado sobre a economia.
Nacional Socialismo e Propriedade
A mídia e grande número de intelectuais tomaram o hábito de opor indiscutivelmente os regimes totalitários do tipo comunista e fascista. Os mais excitados não se impedem mesmo de dizer que este último é um estado supremo do capitalismo liberal e, por consequência, ápice da lógica da propriedade privada. Que fique aqui então bem claro: não existe nenhum tipo de afinidade natural entre um regime de livre empresa e livre mercado – fundamentados no princípio do poder individual absoluto sobre propriedade privada – e algum destes dois regimes autoritários, ou alguma forma dissidente destes dois. Não é falso que os regimes fascista e nacional-socialista reconheciam parcialmente o direito tradicional de propriedade privada. Como propôs Henri Lepage (1985), suas políticas consistiam grosso modo em dissociar liberdades econômicas e liberdades políticas.
Embora estes regimes tivessem mantido o princípio jurídico de propriedade privada, eles não deixaram portanto de reduzir drasticamente sua aplicabilidade, extensão e temporalidade. Mesmo que o princípio econômico de propriedade seja reconhecido, se trata meramente de uma fachada jurídica. Os regimes do tipo nacional-socialista retiram completamente, por exemplo, um dos elementos mais fundamentais dos direitos de propriedade: a liberdade contratual, que engloba não somente os contratos comerciais, mas ainda, os contratos de livre associação (sindicatos, associações, liberdade partidária etc.). Mesmo sem abolir oficialmente o regime de propriedade, o fascismo e o nacional socialismo significam a delegação da propriedade e o contrôle estatal das principais atividades econômicas do país, uma transferência da parte mais essencial dos atributos reais dos direitos de propriedade aos burocratas do governo ou das corporações.
Von Mises lembrou que isto era abertamente anunciado pelos políticos e pensadores do nacional-socialismo:
“Mas poucos advogados dessas teses tiveram a lucidez do filósofo nazi Othmar Spann, que declarou explicitamente que a realização de seus planos conduziria a uma situação onde a instituição da propriedade privada seria mantida apenas em um sentido formal, enquanto que de fato não existiria nada além da propriedade pública.” (Mises 1949, p. 793, traduzi do francês)
Adolf Hitler explicava muito bem a inutilidade de uma formal mudança de regime de propriedade: “Qual a importância disto, se eu coloco duramente os homens no interior de um sistema disciplinar do qual eles não podem sair? Deixemos que eles possuam as terras ou as usinas o quanto eles queiram. O fator decisivo é que o Estado, pelo Partido, é o mestre supremo, sem consideração ao fato que eles sejam proprietários ou trabalhadores. Isto tudo não é o essencial; nosso socialismo é bem mais profundo. Ele estabelece uma relação entre o indivíduo e o Estado, a comunidade nacional. Por que se incomodar e perder tempo socializando bancos e empresas? Nós socializamos os seres humanos.” (Rauschning 1939, p. 99-100, traduzi do francês) Declarações como estas abundam na historia do nacional-socialismo, e demonstram o carácter particular que a propriedade tomava em tal regime. Além das próprias declarações dos dirigentes nazistas, ficam nas ações e políticas adotadas pelo próprio governo a confirmação do tipo de regime de propriedade que vigorava, e isto foi ainda comprovado e relatado por inúmeros historiadores.
O ponto mais importante é saber na mão de quem está colocado o poder económico: nesta dos consumidores em uma economia livre, ou nesta dos burocratas em uma economia planificada. O anticapitalismo de Hitler é suficiente para nos fazer inicialmente pensar que a resposta seria a substituição da livre iniciativa individual pela planificação socialista. As leis alemãs não continham nenhuma disposição que pudesse atribuir uma forma de propriedade social ou coletiva dos meios de produção, terras ou qualquer outro recurso econômico. Hitler nunca demonstrou ele mesmo ter vontade de lançar um vasto plano de expropriação generalizada ou coletivização nos moldes soviéticos. Quando Hitler subiu ao poder na Alemanha, era de conhecimento relativamente geral as tragédias e disfunções que a experiência socialista de coletivização da propriedade havia conduzido.
Portanto não é concebível descrever o sistema econômico nacional-socialista como um regime verdadeiramente capitalista. De fato, por mais que a propriedade fosse “juridicamente garantida” para a administração das empresas e dos bens, era o Estado quem gerava de fato a maioria dos setores da economia. Os nazistas eram suficientemente inteligentes para compreender a fundamental distinção entre direitos reais e direitos meramente formais. A maioria dos socialistas reconhece esta distinção, aceitando que a denominação formal do regime de propriedade não importa tanto: é a propriedade de facto que conta, esta garantindo o poder sobre os bens apropriáveis. Interessa muito mais saber quem controla o quê. Era o Estado quem indicava o que era necessário produzir, em qual escala e quantidade, o preço a ser vendido, as condições de venda, o nível dos estoques, características dos produtos, os níveis salariais dos colaboradores, ou mesmo, a cor dos uniformes.
Trata de um direito de propriedade similar ao direito que vigora nas sociedades e Estados socialistas. Eles têm, na verdade, a mesma essência e característica. O direito de propriedade é apenas um direito delegado, direito que foi atribuído por um poder central que é o verdadeiro detentor do poder econômico e dos direitos efetivos de propriedade. O Estado (representado pela figura do partido nacional-socialista) encarna a personalidade que legitimamente se apropria dos direitos exclusivos regendo a conduta individual e afetação dos bens apropriáveis. É ele quem representa a entidade superior, reagrupando os interesses dos indivíduos, do povo alemão, da nação, do bem público, da luta contra a finança capitalista e o marxismo, etc.
Neste sentido, o princípio que rege os regimes fascistas não é de forma alguma diferente do princípio que rege as sociedades socialistas. Eles não têm nada de similar com a concepção liberal da propriedade privada vigente em regime de mercado e Estado de Direito. Portanto, contrariamente aos marxistas, os nazistas não acreditavam que fosse essencial nacionalizar ou reivindicar a propriedade sobre os meios de produção; para eles, era suficiente obter o contrôle efetivo de direção e gestão das empresas para controlar a economia do país. Para os nazistas, o aspecto jurídico era sumariamente secundário. Eles eram indiferentes ao fato dos alemães deterem ou não direitos e títulos de propriedade, a partir do momento em que o Estado era quem controlava efetivamente o seu uso. Estes títulos não eram mais do que um pedaço de papel que não conferia na verdade quase nenhum direito efetivo. Os patrões das empresas alemãs, mesmo antes do início da segunda guerra, não eram mais do que funcionários do Estado executando ordens editadas pelo partido nacional-socialista.
Conclusão: Apenas uma Estratégia Política
Um dos bordões mais bem difundidos ou propositalmente direcionados a quem não se alinha politicamente às demandas e ideias da esquerda é a acusação de defender ou se identificar com ideais que supostamente estariam às avessas dos ideais, métodos ou políticas esquerdistas tradicionais. Bom seria se isto fosse apenas a expressão objetiva de uma mente ao raciocínio simplista ou binário, do tipo “quem não está comigo certamente está contra mim”, ou ainda, “os inimigos dos meus inimigos são meus amigos”. Melhor ainda seria que os ideais supostamente atacados estivessem efetivamente às avessas dos ideias, métodos e políticas a que os esquerdistas dizem estar fazendo oposição.
A verdade é que, por um lado, tal tipo de raciocínio poderia, sim, ser o reflexo de mentes deformadas pela militância política descerebrada, pelo hábito de se comportar enquanto homem massa – nos termos de Ortega y Gasset –, ou pela incapacidade de ocultar minimamente certos reflexos de matilha, subserviência e impossibilidade de utilizar-se realmente da razão. Longe disso, quando constatamos que o comportamento se repete sem cessar ao longo dos tempos e de maneira deliberada e em diversos níveis da esfera social, fica impossível não reconhecer que se trata de uma estratégia pensada, articulada e veiculada com um proposito político bem preciso, ou seja, uma forma de ultrajar, ridicularizar, contestar, e difamar o que seus adversários representariam politicamente. É uma estratégia política.
Por outro lado, como já pudemos constatar com relativa frequência, os métodos, ideais e políticas denunciados como moralmente repreensíveis, economicamente infundados e politicamente indesejáveis pela esquerda geralmente são derivados ou em sua essência não distinguíveis destes que a própria esquerda acredita promover. E por mais que tais elementos sequer estejam na agenda dos opositores, apresentar o similar como distinto, neste sentido, é também uma estratégia política.
Talvez a manifestação mais magistral deste comportamento e aplicação desta estratégia política é a acusação dos opositores de se alinhar, defender, promover e se identificar com doutrinas políticas do fascismo e do nacional-socialismo: regimes ditatorialmente autoritários, totalitários e inimigos declarados da sociedade aberta, do capitalismo e do liberalismo político.
Não se restringindo às acusações de similaridade, muitos não se envergonham de fazer alusão a determinados eventos ocorridos nos regimes supracitados para acrescentar “provas cabais” da suposta assimilação. Uma das vulgaridades mais conhecidas é o suposto alinhamento das políticas do governo que foram aqui apresentadas, uma forma de mostrar que estes regimes estariam em plena similaridade com o sistema capitalista, com o livre mercado, e por que não, com o liberalismo. Espero que este breve texto tenha ajudado a esclarecer um pouco mais a questão.
Referências
Bel, G., From Public to Private: Privatization in 1920’s Fascist Italy, European University Institute Working Papers, 2009.
Guérin, D., Fascisme et grand capital. Ed. Syllepses, 1999 (1936).
Lepage, H. Pourquoi la propriété. Collection Pluriel. Ed. Hachette, 1985.
Mises, L. V. Human Action. Yale University Press, 1949.