Roubando palavras: Propriedade pública
Roubar palavras é a prática de corromper conceitos válidos, usando as palavras para confundir em vez de esclarecer. Quando uma palavra é usada para descrever algo que contradiz o conceito que aquela palavra representa, não só o diálogo se torna impossível como também o próprio pensamento racional.
Na sociedade há dois meios possíveis de interação: a razão e a força. Substituir a razão por mistificação só interessa a quem pretende impor a força. As esquerdas e os populistas usam palavras para provocar emoções, não para transmitir idéias. Isto lhes é necessário, pois a política que defendem é a imposição da força sobre o indivíduo. Ninguém aceitaria isso se entendesse o que está em jogo.
Roubar palavras é artifício constante no discurso esquerdista e populista, e deixa o adversário despreparado sem reação. Quem defende a liberdade precisa conhecer os artifícios de quem a pretende destruir.
O roubo da palavra Propriedade
Propriedade é um conceito abstrato. Isso não significa de forma alguma que é um conceito vago ou que pode ter vários significados diferentes. Significa que é um conceito que requer o desenvolvimento de uma longa cadeia de conceitos precedentes para ser corretamente compreendido.
Conceitos abstratos são os mais susceptíveis ao roubo de palavras. Subverter um conceito com um baixo nível de abstração significa contrariar a realidade de maneira evidente, pois o interlocutor provavelmente conhece a definição objetiva daquele conceito.
Por outro lado, muitas pessoas não têm conhecimento de toda a cadeia indutiva que leva aos conceitos mais abstratos. Sabem o que significam “na prática”, mas não conseguem defini-los com rigor. Nesses casos, é fácil usar a palavra que conhecem e associam implicitamente com esse sentimento – para dizer algo completamente diferente.
Propriedade é um conceito político. Isso significa que é um conceito que se refere a como as pessoas interagem. Compreender o que significa “propriedade” requer entender a teoria política, o que por sua vez requer saber o que são e porque existem os direitos individuais.
Neste texto não se pretende desenvolver estes conceitos. Aqui é suficiente demonstrar que entender o conceito “propriedade” requer conhecer diversos outros conceitos abstratos e sua relação.
Ter propriedade sobre alguma coisa significa deter o total controle sobre o uso daquilo. O direito à propriedade é o direito de controlar totalmente aquilo que se produz com o próprio trabalho. Quando alguém diz “isto é meu”, está dizendo “posso fazer o que eu quiser com isto sem pedir permissão a ninguém”.
É fácil ver que o conceito de propriedade é, por definição, exclusivo. Se duas pessoas fazem uma sociedade e abrem uma empresa, nenhuma das duas é dona da empresa. Cada uma delas separadamente não pode dizer “eu sou dono desta empresa”, teria de dizer “eu sou dono de uma participação de 50% desta empresa”. Há vários pontos interessantes que esse exemplo permite identificar.
Não seria correto dizer “sou dono de 50% desta empresa” ou “sou dono de metade desta empresa”, seria necessário perguntar: qual metade? Ao formarem a sociedade, os participantes definem termos a que se submetem. Definem que direitos sua participação lhes confere na administração do negócio, nos lucros e nos ativos.
Ao dizer “sou dono de uma participação de 50% desta empresa”, se está dizendo “posso fazer o que quiser com um título que me dá o direito a 50% do capital desta empresa, nos termos do contrato que formou a sociedade”. O sócio pode vender sua participação nos termos que quiser – mas ele não pode vender uma máquina qualquer e depois dizer “esta fazia parte da minha metade”.
Isso demonstra que o conceito exclusivo de propriedade não é incompatível com as inúmeras situações que conhecemos de propriedade partilhada.
O conceito “propriedade” é roubado quando se usa esta palavra para representar seu oposto. Isso é feito através do anti-conceito “propriedade pública”.
Ao contrário de uma sociedade ou outra forma de propriedade compartilhada, no caso da “propriedade pública” cada um dos supostos “donos” não tem o direito de fazer o que quiser com nenhuma parte daquele bem. Como exemplo, vamos usar as ruas.
Se você mora em um condomínio fechado, a rua da sua casa é “propriedade particular”. Você não é dono de sua rua, nem da parte que está exatamente em frente à sua casa. Mas é dono de uma participação no condomínio.
Você só pode vender sua participação no condomínio vendendo também sua casa – mas isso é apenas parte dos termos do contrato que você assinou ao comprar sua casa ou terreno. Se você não gosta daquele condomínio, pode se mudar para outro que prefira. Este é o uso correto do conceito propriedade.
Já se você não mora em condomínio fechado, a rua de sua casa é “propriedade pública”. Você não é dono da sua rua e, nesse caso, não pode vender “sua” parte nela. Embora as palavras “propriedade pública” impliquem que todos são donos daquele bem, a verdade é que nenhum cidadão tem real propriedade – poder de fazer o que quiser – com aquela rua, nem com qualquer parte dela.
Quem tem a prerrogativa de dispor da “propriedade pública”, na realidade, é o governo. É o governo que pode livremente dispor dela e é o governo que determina sua alienação ou condições de uso. O nome correto para “propriedade pública” é propriedade governamental, pois é o governo que tem total controle sobre seu uso.
Para combater a deturpação é preciso chamar as coisas pelo nome correto. Da próxima vez que ouvir que algo é “propriedade pública”, não hesite, diga: “então quero vender minha parte”. Se você não pode fazer isso, trata-se na verdade de propriedade do governo!
O conteúdo dos 3 parágrafos iniciais não é do livro “A Nova Era e a Revolução Cultural”, de Olavo de Carvalho?