Sobre Valores e Princípios
Consideramos estas verdades como evidentes por si mesmas; que todos os homens são criados iguais; que são dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis; que entre estes estão vida, liberdade e busca da felicidade. (Declaração de Independência dos Estados Unidos)
Uma frase de Hayek, que publicamos no último dia 11, gerou alguma celeuma no Facebook, a partir do comentário de um leitor, que atribuiu a ela um viés relativista. Eis a frase:
“Uma sociedade que não reconhece que cada pessoa tem valores próprios, os quais ela tem o direito de seguir, não respeita a dignidade do indivíduo e não conhece realmente a liberdade.”
Segundo o comentarista, se dermos plena liberdade para que cada um siga os próprios valores, nada impediria que, em nome de certos valores, alguns indivíduos saíssem por aí, por exemplo, escravizando ou assassinando outros.
A confusão é plenamente justificável, a partir da utilização de conceitos equivocados. Qualquer um que conheça, ainda que apenas superficialmente, a filosofia de Hayek sabe que a interpretação dada pelo leitor para aquela sentença não corresponde à verdade. Porém, como muitas vezes falamos para pessoas que ainda não foram introduzidas a certos conceitos básicos do liberalismo, vale a pena uma breve explicação.
Antes de qualquer outra coisa, deixe-me esclarecer o significado de princípios e valores, já que uma certa confusão entre os dois conceitos costuma ser frequente, principalmente quando os termos não são bem definidos.
Colocando de forma simples e prática, valores são medidas variáveis e/ou escalares – dependentes de avaliações pessoais subjetivas – da importância que se atribui a um objeto, sentimento, qualidade, virtude, vício, atividade, etc. Assim, os valores estão voltados ao escalonamento de prioridades de cada indivíduo em relação à própria vida e à busca da felicidade. Uns darão mais ênfase à vida profissional, e menos à vida pessoal. Alguns colocarão o aprimoramento espiritual acima da prosperidade material. Certas pessoas darão prioridade à busca pelo conhecimento, enquanto outras preferirão o entretenimento. Para uns, o trabalho terá preferência sobre o lazer e vice-versa.
Já os princípios dizem respeito a meios, a formas de conduta. O princípio da “não agressão”, por exemplo, é um preceito fundamental para os liberais. Ele é derivado do respeito a certos direitos (chamados naturais) inalienáveis de todo ser humano: os direitos à vida, à liberdade e à propriedade (inclusive, e principalmente, sobre o próprio corpo).
Das duas conceituações acima, podemos concluir que, para os liberais, você pode fazer o que bem quiser com sua vida, sua liberdade e sua propriedade, de acordo com os seus valores subjetivos, desde que você não inicie agressão contra a vida, a liberdade ou a propriedade de ninguém. Ao Estado, por conseguinte, cabe zelar pela integridade daqueles direitos, impedindo as pessoas de utilizar meios que atentem contra a vida, a propriedade e a liberdade uma das outras, sem interferir, entretanto, na consecução dos objetivos ou na conduta moral de cada um.
Portanto, a frase de Hayek poderia ser complementada pela frase que postamos no dia seguinte, da lavra de William O. Douglas:
“O direito de ser deixado em paz é, na verdade, o começo de toda a liberdade.”
O que as frases de Hayek e Douglas sintetizam de maneira brilhante é que cada indivíduo é mais importante que qualquer coletividade. Estados, igrejas, empresas e associações diversas são apenas ferramentas utilizadas pelos indivíduos para alcançar certos objetivos comuns. Para os liberais, uma organização social é boa quando seus povos são formados por pessoas livres, sem entraves em seus caminhos na busca da felicidade, desde que respeitados os mesmos direitos dos demais.
Diferentemente de esquerdistas e certos conservadores, os liberais não pretendem fabricar a felicidade, o bem-estar ou a moralidade de ninguém por meio da coerção estatal ou de qualquer instituição ou associação que domine e reprima o indivíduo, independentemente de suas escolhas.
Tal pretensão leva, invariavelmente, a uma confusão entre meios e fins. Uma das razões por que os liberais têm imensa desconfiança em relação aos poderes do Estado está no fato de que este, não raro, utiliza a violência como um meio de tentar atingir os objetivos de felicidade ou bem-estar geral, relegando a liberdade ao segundo plano.
Finalmente, os liberais são avessos à coerção porque entendem que os seres humanos devem ser livres para escolher o seu próprio caminho, de acordo com os respectivos valores e prioridades de cada um, às vezes errando, outras vezes acertando. Até porque, a liberdade e a busca pela felicidade são inseparáveis. Ninguém conhece melhor os seus desejos mais íntimos e suas próprias circunstâncias que o indivíduo.
Em síntese, o liberal não pretende impor regras ou sanções sobre o trabalho, as crenças, os discursos, as roupas, as manifestações artísticas, o consumo, as trocas ou o comportamento sexual de quem quer que seja. Acima de tudo, somos contra a utilização dos poderes do Estado na tentativa de criar idealizações terrenas de sociedades perfeitas.
Interessante a colocação de que o “indivíduo é mais importante que a coletividade” todavia acho que Hayek é mais complexo do que apenas uma frase. Suponhamos que uma empresa possua um conselho diretor com 10 membros e possua 5.000 funcionários. em uma situação de crise a empresa precisa “enxugar” seus números e decide demitir 10% de sua força de trabalho para digamos “ajustar as contas”, ora os atualizados manuais de RH recomendam que isto seja feito sem afetar os restantes 4.500, pois se a coletividade restante sentir que está sob extrema pressão, o stress causado pela expectativa de ser o proximo da “fila do desemprego” aumentam as taxas de acidente de trabalho, e afetam a produção, consequentemente reduzindo os lucros. Ora, para o bem da “coletividade” da empresa (acionistas, diretores, presidentes e lá no finalzinho o “chão de fábrica”) é necessário que as medidas tomadas realmente resultem em economia e não gerem uma situação impossível de gestão.Agora, se o empregado não entende que deve trabalhar para a “coletividade” (a empresa de maneira adequada,que ele tente ser feliz em outro lugar….
No
livro de Hayek “O Caminho da Servidão”, é deixado clara esta
confusão.
O leitor tratou poder como sinônimo de liberdade, o que não é o
caso. Poder é capacidade de executar ações, quanto maior, mais ações podem ser
executadas. A liberdade é a possibilidade de fazer escolhas entre diversos
meios para a consecução de seus fins, não importa se esses meios sejam
predeterminados. Qualquer Estado detém muito poder, mas no caso do Estado de
Direito ele não é dotado de nenhuma liberdade, partindo de pressuposto que o
Estado possa agir. Já o indivíduo deve ter o máximo de liberdade, isto não
significa que ele pode fazer o que bem quiser, pois isto é poder.