A curiosa tirania do bem
Muito antes de se embrenhar no capiloso, inquieto e confuso vocabulário político (esquerda, direita, conservador, progressista, comunista, capitalista, fora os 9523498234872 sentidos correntes, contraditórios e multifacetados de palavras como “liberal” ou “democracia”), urge ao leitor buscar alguns pressupostos anteriores a estes termos – usados no jornalismo e mesmo na Academia, quase em 99% das vezes, de maneira psicológica (jogando com sentimentos positivos ou negativos atrelados a cada palavra) em vez de buscando um conceito claro associado a algum termo.
Um destes pressupostos que merecem análise é a noção de liberdade, tão afeita aos liberais. Excetuando-se os raros defensores desabridos de tiranias (raros, porém perigosíssimos: costumam ser os grandes mestres na arte de tomar o poder, muitas vezes nos braços do povo que oprimem), praticamente todas as correntes juram defender a liberdade, mesmo tutelando programas opostos.
Todavia, tal como “belo” ou “justo”, há vários graus internos da palavra liberdade, que sozinha não diz a que veio. Agravando-se a Torre de Babel interna numa língua só, o conceito, os sentimentos atrelados à palavra (e também ao conceito, distintivamente), os métodos, meios e objetivos da palavra “liberdade” variam enormemente, tornando-se o seu exato oposto, na boca de um liberal da Escola de Manchester ou de um comunista libertário (não confundir com os libertários liberais), na defesa apaixonada de um teocrata islâmico ou de um progressista social-democrata.
Para nos ajudar a voltar a alguma possibilidade de comunicação, partindo de pressupostos comungados e palavras associadas aos mesmos significados (o que um sofista grego, Pródico, praticava como ortoépia), podemos tomar de empréstimo um termo da física quântica, quando lidava com problemas análogos para superar uma teoria anterior: a “renormalização”, como proposta pelo físico nobelizado Richard Feynman.
Grosso modo, “a renormalização proíbe refinamentos intermináveis e afirma que o primeiro valor aproximado é o mais correto. Em outras palavras, não se matar com requintes infinitos e usar a navalha de Occam”. Com isso evitaremos as desvirtuações historicamente posteriores a termos canonizados pelo vernáculo de inúmeras línguas e conseguiremos um conceito comum a ser trabalhado, sem ter sido contaminado pela manipulação de projetistas sociais posteriores.
É uma tarefa inglória, pois se poucos analisam os já falhos dicionários antes de inflamar arrazoados palavrosos, tal como no adágio se vis pacem, para bellum, é preciso sempre cuidar dos inquietos significados de termos em cada nova conversação com cada diferente interlocutor. Como diz Feynman, “é de fato praticamente impossível dizer qualquer coisa com precisão absoluta, a menos que essa coisa seja tão abstraída do mundo real que não represente qualquer coisa real”.
No caso da liberdade, podemos entender que liberais (usando o sentido econômico do termo, que engloba liberais clássicos, conservadores, libertários e uma boa fatia do que é chamado de “direita” politicamente) entendem que uma pessoa é livre quando pode se associar livremente, se manifestar e trabalhar sozinha ou em conluio (criando uma empresa, investindo em empresas alheias) e ficar com os frutos de seu trabalho para si, sem coação do governo, que só deve agir em caso de rompimento da ordem de trabalho de livre associação, com a Justiça agindo contra crimes de sangue, fraudes, coações e uso de força entre as pessoas. Esta é a chamada liberdade econômica, auferida, por exemplo, pelo Índice de Liberdade Econômica da Heritage Foundation.
Já para os adversários do livre-mercado, mesmo quando aparentemente rompidos com a tradição marxista (fascistas, nazistas, comunistas, anarquistas, sociais-democratas, neoliberais, mantenedores do crony capitalism, ditadores e simplesmente toda a chamada esquerda política), um povo (e não “um indivíduo”) é livre quando possui meios políticos de “combater a desigualdade” ou alguma injustiça suposta ou verdadeira na sociedade, podendo usar o poder coercitivo do Estado para criar uma sociedade conforme um plano centralizado, com ou sem a busca de “representatividade” política dentro deste desenho social.
Podemos então enxergar novos pressupostos em cada definição. Para os liberais, o individualismo é pedra de toque e conditio sine qua non para haver liberdade. Para adversários do liberalismo, antes há “o povo”, como massa abstrata, e o individualismo é nocivo, por não comungar do desenho social, podendo escapar dele e não consentir em um plano político homogêneo para todas as pessoas. É o chamado coletivismo.
Ainda mais a fundo, o liberal considera a inviolabilidade da vida humana e da vida privada, a propriedade privada e a livre associação com fins pacíficos (por exemplo, a criação de uma empresa) como valores absolutos – certos conservadores até consideram tais valores transcendentes, independentes de questões utilitaristas da realidade.
Já para o progressista, o desenho social pretendido é justificado pois há convenções sociais que são mutáveis e abaláveis por este mesmo desenho social, que pode então ser tomado pelas pessoas certas para se redefinir a sociedade conforme as conjunturas. É o chamado relativismo, que gerará contemporaneamente o multiculturalismo.
O escritor C. S. Lewis, em seu imprescindível livro The Abolition of Man, ainda na década de 1940 atentava para uma perigosa conseqüência imprevista deste pensamento, também partindo de uma aparentemente prosaica visão de mundo apresentada em um livro de gramática.
Algo mais antigo do que os anseios da esquerda daquele tempo estava embutido em seus projetos, sem que a esquerda percebesse. Tal como Marx se inspirara em Maquiavel, toda a visão de Estado dos adversários da livre empresa permanecia razoavelmente inalterada desde Thomas Hobbes. Comenta Benjamin Wilker, sobre Lewis:
“Hobbes foi o primeiro pensador moderno a atacar sistematicamente a noção de que exista qualquer ordem natural, moral. Ele argumentou que as palavras ‘bom’ e ‘mau’ são apenas descrições de nossos próprios gostos e desgostos individuais. Ele foi, portanto, o pai do relativismo moderno. Para Hobbes, foi a convicção de que existem verdades morais, e que devemos lutar por eles, que causou todas as guerras. Ele era, devemos acrescentar, o primeiro a entender que a manutenção da paz em um mundo tão relativista exigia a aceitação da tirania política – o que faz dele também o pai do absolutismo moderno (e do estatismo da esquerda moderna).”
Tal se vê facilmente, hoje, em qualquer campanha estatal (ou mesmo no lobby privado de grupos e entidades progressistas) quando querem combater algo que eles enxerguem como uma injustiça.
Por exemplo, quando acertadamente querem combater o racismo, o método progressista é combater uma força abstrata, “o racismo na sociedade”, quase sempre implicando que enquanto toda a sociedade não for consertada, nada pode ser consertado. Por isto, aceita alegre a prerrogativa de que é preciso uma força estatal para coagir toda a sociedade, proibindo certos comportamentos.
Tal método não pode produzir uma definição precisa do que seja “racismo” em cada caso (implicando proibição e lobbies negativos até para atores pintando o rosto de preto ao encenar uma peça que há mais de um século se utiliza de tal subterfúgio), simplesmente porque nenhuma ordem ou lei formal pode abarcar com justiça toda a multifacetada realidade (por isso existem juris e juízes).
Ainda mais grave é quando tal forma de coação pretende-se representativa de toda a comunidade, em termos de Ortega y Gasset, outorgando-se ao desenhista social a autoridade de todo um coletivo de pessoas, muitas vezes escolhida a dedo, na qual as vontades do planejador central supostamente sejam as de todo um povo, em uniformidade sempre misteriosamente coincidente com suas próprias.
É o que vem fazendo o programa social do Partido dos Trabalhadores no Brasil, com campanhas de lobby como o “Humaniza Redes”, perfil gerido por rios de dinheiro e quase nenhuma relevância de audiência apenas para “denunciar” casos de racismo, homofobia e machismo (o que Roger Kimball chamou de o “tripé” de entendimento da realidade pela esquerda de hoje), sem perceber (ou sem se importar com isso) que apenas estão criando orwellianamente um totalitarismo brutal em que tão somente a opinião oficial chancelada pelo partido é permitida.
A estrovenga é ainda mais perniciosa por ser dinheiro do pagador de impostos brasileiro (que trabalha até maio apenas para pagar o Estado) para os desejos de um partido político com cada vez menor aceitação pelo seu fracasso em subtrair dinheiro e liberdade das pessoas em nome de um plano central coletivista e Estado-dependente.
Enquanto não consegue criar uma lei totalitária de novilíngua para proibir pensamentos, cria um lobby para constranger quem não reza a cartilha do partido… e com dinheiro do pagador de impostos. Um progressista considera isso “liberdade”, para “não ofender” ninguém, porém, um liberal sabe que isto é uma restrição tirânica não apenas de ação, e nem mesmo apenas de pensamento, mas até de contato direto com a realidade, sem as torções vocabulares criadas pela esquerda.
Claro, também com definições próprias do que supostamente defende e do que supostamente quer combater, sem nunca deixar regras de conduta claras para o que será punido rigorosamente e o que é apenas manifestação cultural legítima e bela. Todas, em seu discurso, seriam decisões unânimes de toda a sociedade, e não invenções tresloucadas de burocratas tirânicos.
Os liberais, pelo contrário, procuram combater o racismo sabendo que não existe uma “força” abstrata, O Racismo, como agente concreto na história, que apenas utilize indivíduos viventes para agir em seu nome, e que toda coação e suposta correção social age sobre seres humanos, de carne e osso, e que isto, ao invés de uma libertação, diminui a liberdade humana.
O que existe são pessoas racistas, e “racismo” é apenas uma abstração posterior que usamos para descrever um fenômeno variado. Não à toa, o maior livro sobre liberalismo já criado chama-se Ação Humana, a despeito da superstição de analfabetos políticos totalitários que nunca ouviram dele falar, por só lerem o que o establishment os manda ler.
Este é o discurso da nova esquerda, que trocou o velho chiste do “é proibido proibir”, quando tinha uma igualmente anti-liberal e estatólatra ditadura militar como concorrente, pela esquerda “sou a favor da liberdade de expressão, mas…”. A esquerda do politicamente correto, recortando da realidade apenas o que possa lhe dar mais poder de mando sobre outras pessoas, usando como desculpa o tripé racismo-machismo-homofobia.
Ao contrário do que alguns universitários costumam pensar de estro próprio, o estudo não está atrelado à liberdade – geralmente é até o contrário, com o desfile sem fim de defensores de totalitarismos que compõem o cânone dos estudos de humanidades, de Hobbes e Maquiavel a Slavoj Žižek e Noam Chomsky.
A luta pela liberdade deve passar anteriormente pela renormalização de pressupostos que subsistem em cada visão de mundo – hoje rigorosamente incomunicáveis, com um lado usando a palavra “liberdade” clamando pela liberdade de ação (política, econômica, civil etc), aceitando apenas a igualdade perante a lei, enquanto outro considera que liberdade está associada à igualdade – mas não perante a lei, e sim a igualdade absoluta de resultados econômicos, usando a força estatal para subtrair a riqueza criada para dá-la a quem não criou, sob auspícios do aparato estatal, que ficará com boa parte deste butim, sem criar nada.
Não à toa, países liberais criam riqueza para todos, inclusive pobres, enquanto os esquerdistas possuem Estados com burocratas ricos, com a população igualmente pobre.
É uma realidade que vemos cada vez mais desabridamente no Brasil, com todos aqueles que juram serem adversários de ditaduras sendo os primeiros a defender a mais brutal das tiranias – e considerar que só existirá uma sociedade boa quando todo o poder de dominância estiver em suas mãos.